23 novembro, 2010

Olhai por nós - João Bosco Maia - Capítulo II


 Com o peso e o movimento frenético do chamado garoto de programa às suas costas, somado ao efeito das três doses de uísque, ele não teve tempo de assimilar as  imagens  que passavam na  televisão.  Mas,  sem qualquer  dúvida,   relacionou-as de imediato a algo que estava adormecido recentemente na memória e que dali, em mistura a outras   lembranças   sem  significância,   resolveu  saltar  de  súbito à  realidade.  Agora, depois de quase três horas em que abandonara o hotel e rumava em um boing de volta para Belém,  aguardava ansioso que a matéria,  que ganhara  repercussão nacional,  se repetisse   no   telejornal   que   a  televisão  a   cabo   oferecia   de   hora   em  hora   em  sua programação.  Estava atento à tela e havia recusado pela segunda vez a bebida que a comissária lhe tinha oferecido. Recusara a bebida mas pedira a ela que selecionasse o canal   exclusivo   de   notícias.  Não   retirou   os   olhos   daquela   direção,   dando   pouca importância às pessoas que viajavam na aeronave, inclusive às duas que ocupavam as poltronas à sua esquerda. Só sabia que dormiam, assim como boa parte dos passageiros, e isso era bom.

As  imagens esparsas e a voz não menos  fragmentada do arcebispo ao repórter povoavam-lhe a mente por completo desde que pagara a conta do hotel, entrara no táxi e vira, pela janelinha do avião, as luzes da imensa São Paulo sumirem lenta e melancolicamente na escuridão. No zumbido distante das turbinas, junto com o medo daquele monstro de ferro se espatifar lá embaixo, uma pergunta se somava à vertigem e vagava   nas   alturas.   Como   uma   coisa,   aparentemente   sem  nenhuma   importância, ganhava assim  tamanha dimensão? Era uma grande bobagem...  não  restava qualquer dúvida. E como uma bobagem daquelas, uma bobagem que estava apelidada de projeto lá dentro de sua gaveta, tomava corpo e aparecia de repente num telejornal de âmbito nacional? Não era possível que estivesse equivocado...

Ajeitou o fone de ouvido e arregalou os olhos quando a apresentadora identificou-se,   dando   o   regular   boa   noite.  A moça   desfilou   as  manchetes   e   algo   o impulsionou da poltrona no  instante em que ela disse “na cidade de Santa Izabel  do Pará, há cerca de quarenta quilômetros de Belém, uma verdadeira multidão corre para ver de perto a imagem de Nossa Senhora encontrada soterrada numa invasão à margem da rodovia que liga as duas cidades”. 

- Aceita agora um drink, senhor? – perguntou docemente a aeromoça.

Ele respirou fundo e balançou a cabeça negativamente, sem tirar os olhos da televisão.

- Se precisar de qualquer coisa, pode pedir – disse ela mais baixo, para não acordar os outros.
- Obrigado – ele respondeu, codificando com as pontas dos dedos uma espécie de palavrão no braço da poltrona e esticando a cabeça para frente para encurtar a conversa.

E a conversa acabou acordando o passageiro ao lado. A comissária viu o movimento e indagou solícita:

- Aceita alguma coisa, senhor?

- Sim, sim – respondeu o outro, enchendo o espaço de um odor acre em que sobressaia o álcool fermentado. – Um uísque!

Desperto, esfregou os olhos, parecendo disposto também a assistir ao noticiário. Acomodou-se na poltrona.

A apresentadora, depois de levar à exaustão uma matéria sobre a variação do dólar nas bolsas de valores do mundo inteiro, entrou, por fim, no assunto esperado. 

Como dissera na manchete, tratava-se de uma imagem de Nossa Senhora encontrada por um casal na invasão de um terreno na beira da BR-316, na cidade de Santa Izabel do Pará. Enquanto um repórter falava em off, as câmeras iam captando as imagens do local, onde desde as primeiras horas do dia as pessoas fervilhavam aos milhares. A estatueta da mãe de Cristo – agora em primeiro plano -, de uns trinta centímetros, envolta num manto azul e sobre uma mesa improvisada em altar, havia sido encontrada por um casal de  jovens.    Esse casal  – a câmera exibia os  dois  e uma   legenda     indicava  que a imagem era de arquivo -, ao cavar o alicerce de sua futura morada, deparou com a santa, soterrada a cerca de quarenta centímetros do chão. O rapaz indicava com o dedo o local do achado, justamente onde improvisaram o altar. O fato foi presenciado por um rapaz e uma senhora – que davam seu depoimento neste  instante ao repórter.  Ambos viviam pedindo esmolas e vagavam por  entre os  invasores,  arrastando-se cada um em duas muletas. Na hora do achado, quando passavam ali perto, atiraram para o alto as muletas e correram sãos até os pés da santa. Foi um milagre! – choravam eles.
O homem na janela do avião, com o queixo pousado na mão, olhava a cena sem mover  um músculo.  Só coçou o nariz e o bigode por um breve momento. 

Conhecia um a um daqueles rostos, mesmo disfarçados por um cabelo pintado - ou a moça usava uma peruca? -, ou por trás de um bigode e uma barba falsos. Ainda que os tivesse visto somente uma vez, lembrava de todos,  exceto obviamente daquela velha, que não fazia parte do grupo que havia conversado com ele em seu gabinete,   lá em Belém, local para onde voltava depois de quase um mês na capital paulista. Riu agora, um pouco perplexo, um pouco admirado com a ousadia do grupo. Na verdade, a falta de importância ao caso fora ele próprio quem dera. Subestimara o tal projeto logo que viu, na primeira página, um monte de idéias mal redigidas e sem qualquer associação entre si. Subestimara também a explicação resumida que um deles tentara fazer, cortando-lhe a palavra no ato ao prometer que ia ler o texto e lhes daria brevemente uma resposta. Os papéis   foram parar  no  fundo da gaveta e a  resposta  fora dada displicentemente por telefone dois dias depois: Sim, podem fazer.

A matéria   foi   encerrada   com  a   participação   do   arcebispo   de  Belém, alertando para a cautela que  requeria aquele  tipo de  fato.  A  Igreja  iria   investigar  o assunto, concluiu lacônico.

- Isso é tudo uma patifaria. O povo besta é que vai atrás dessa história – disse o homem ao lado. – Garçonete, traga mais uma bebida dessas pra mim! O senhor tava vendo? O senhor não acha isso uma grande patifaria pra tapear o povo?

Ele  achou graça.  Pediu um uísque  também.  Virou-se para o vazio da escuridão lá fora, meditando sobre a situação.
 Havia dormido pesado,  sem mesmo ter percebido a escala em Brasília. 

Acordou quando o avião baixou na pista do aeroporto de Belém junto com os primeiros raios do sol. Desceu rápido na escada, acompanhado de uma pasta preta e dos óculos escuros, e se dirigiu por entre o túnel sanfonado para a sala de desembarque, onde se aglomeravam passageiros  de mais  outros dois  aviões pousados naquela última meia 4hora.   Havia   um   enxame   de   bocas   bocejando   e   soltando   impropérios   contra   a administração do aeroporto. Todos reclamavam da demora na liberação da bagagem, ao mesmo tempo em que a sala ia se tornando pequena diante dos novos passageiros que vinham  chegando.   Fora   da   sala,   por   trás   da   divisória   de   vidro,   outra  multidão   se aglomerava impaciente; eram os familiares e amigos dos que estavam dentro daquele enorme aquário.

Mas   ele   não   se   perturbou.  Dirigiu-se   até   o  homem  de   uniforme   que estava plantado diante da porta que dava acesso à esteira de bagagem e mostrou-lhe algo que retirou do bolso interno do paletó. O funcionário do aeroporto abriu a porta e o deixou passar livremente. No corredor, enquanto uma voz metálica feminina falava em inglês   no   alto-falante,   encontrou   com mais   dois   homens   que   vinham  no   sentido contrário.  Um deles,  o que conduzia um rottweiller  pela coleira,  abriu um sorriso e disse:

- Olha quem está aí! Bom dia, chefe! Fez boa viagem?

- Tranqüila – respondeu. - O que está acontecendo?

- Está vindo aí uma cocaína pesada – falou o mesmo. - Estamos filtrando a bagagem de todo mundo que está fazendo escala em Brasília. Acho que já achamos o dono. Veio no mesmo avião que o senhor.

- Bom trabalho pra vocês! Hoje mesmo eu assumo o caso.

Afagou o cão e foi ao encontro da sua mala que vinha vindo na esteira. 

Tomou a direção do ponto de táxi. Antes, porém, passou na banca de revista e comprou os  dois   jornais  de maior  circulação na cidade.  Estava ávido para  ter  em detalhes  a notícia que estampava uma cidadezinha perto de Belém para o resto do país.

E ali ela estava. Matéria de capa de ambos os periódicos. Leu-a durante toda a viagem. Novamente viu os rostos de dois dos três que haviam chegado até ele há mais  ou menos  dois  meses  no  seu  local  de  trabalho.  Enganara-se quanto à cara do homem aleijado que havia  se curado ao ver  a  santa,  mas o casal,  agora,  não havia qualquer sombra de dúvida... Roberto Andrade e Lúcia Silva, eis o nome dos dois na legenda sob a fotografia. Foram eles que haviam encontrado a santa há uma semana...

E o caso já ia para uma semana! Há sete exatos dias que não parava de chegar   gente   na   invasão   que      tinha   recebido   até   o   nome   de  Vale   dos  Milagres. 

Caravanas   inteiras,   inclusive de outras   localidades,   se dirigiam para  ali.  O povo  se ajoelhava ao pé da imagem, de dia e de noite. Havia inclusive uma foto noturna colorida mostrando as centenas de velas acesas em vigília em torno da santa. A cena lembrava um astro luminoso, como um cometa, no centro de um céu empanzinado de estrelas.

Quando   começou   a   ler   a   notícia   sobre  o   sumiço  do   casal   que  havia desencavado a imagem, o motorista o chamou:

- Pronto, mestre! Prédio da Polícia Federal!

Pagou a conta,  pegou as malas e  foi  entrando no prédio.  Alguém que estava  na   guarita   de   entrada   o  auxiliou  na   condução  das  malas.  Subiram  a   escada principal.

- Bom dia, chefe! Como foi de viagem? – disse um rapaz que descia a escada a galope.

- Foi muito proveitosa. O superintendente já chegou?

- Não! – gritou já lá debaixo.

No segundo andar, dirigiu-se à porta onde estava escrito “Delegacia de Entorpecentes”.  Abriu-a.  A mesa vazia  indicava que a sua assistente ainda não havia chegado.  Abriu a segunda porta que dava para o seu gabinete.  Agradeceu a ajuda e desabou na sua poltrona de trabalho. Disse, após espreguiçar-se:

- Seu Donato, quando o PS chegar, diga pra ele vir até aqui.

- Pois não, delegado Mateus – falou o agente de portaria. - Já estou indo lá agora mesmo!

Não passava das oito da manhã. O expediente estava apenas começando na Superintendência da Polícia Federal em Belém.

O delegado  foi  direto à gaveta e,  mais  direto ainda,   foi  ao bloco grampeado de quatro ou cinco folhas que se achava embaixo dos outros documentos. 

Passou a ler o fim da segunda página, onde tinha estancado a leitura há um mês e pouco atrás,  e não conseguiu terminá-la.  O gesto tinha sido muito mais para certificar-se de que os papéis permaneciam ali.

- Quanta baboseira! – disse indignado. – Como é que um pessoal que está largando a universidade escreve tão mal assim! E o pior é que não é só um. Chamam isso de equipe – movimentou os lábios, fazendo uma onda no bigode denso.

Mas a idéia, refletiu, até que não era tão ruim assim. O resultado estava sendo mostrado por aí...  Na prática,  mesmo parecendo  ter sido escrita por alunos do nível fundamental, seguia os tópicos do tal projeto e o deixava a distância. Devolveu os papéis novamente para a gaveta, lembrando-se da notícia do “sumiço” no jornal.

O casal, Roberto Andrade e Lúcia Silva, não tinha sido visto no local do achado há cerca de dois dias.  Especulava-se que havia atendido a  recomendação da polícia, ou quem sabe da própria Igreja Católica ,  para sair de cena por alguns dias, até as coisas acalmarem. Em contrapartida, dizia outra matéria, as curas continuavam a se multiplicar e mais pessoas aportavam a cada hora no Vale dos Milagres. Provavelmente tinha sido isso que havia levado a imprensa até o local e, ao mesmo tempo, forçado o chefe   da   Igreja  Católica   no   estado   a   se  manifestar   publicamente.  E  uma   coisa   ia engrossando a outra, como uma bola de neve no despenhadeiro.

A manhã passou rapidamente, enquanto fez os despachos de rotina com a sua assistente,  conversou com os  colegas  de  repartição,  assistiu por  cerca de cinco minutos o interrogatório da moça coreana que fora presa no aeroporto portando cocaína, telefonou para o superintendente,  que viajava para Brasília,  e telefonou também para sua esposa, avisando de sua chegada e informando que a veria somente no jantar - o que não iria acontecer com certeza, em face do telefonema que recebeu logo de imediato. A assistente havia atendido a chamada e passou-lhe o aparelho.

- É pro senhor, delegado – disse ela. - Identificou-se como Simão. Acho que foi essa mesma pessoa que tem ligado pro senhor durante esses dias.

O delegado baixou o aparelho sobre a perna e pediu a ela que aguardasse na outra sala, alegando assunto confidencial.

- Pode falar, Simão – disse, quando ficou sozinho.

Ouviu-o por alguns segundos, reconhecendo-lhe a voz. Voltou a falar:

-  Fique  calmo,   rapaz.  Não,  não...  Não vai   acontecer  nada   com você. 

Fique calmo e acalme os outros. 

Nesse momento, a porta se abriu de repente e entrou um sujeito obeso, a blusa encharcada de suor:

- Grande Mateus!  Bem-vindo de volta à terrinha!

O delegado o deteve com a mão espalmada, pedindo silêncio. Continuou a conversa.

- Olhe,  me dê um endereço onde eu possa encontrá-los tranqüilamente hoje à noite. Às sete. Isso. Pode ser numa praça, sim. Sim, conheço. Está certo. Às sete. 

Não há de quê. Até logo!

Devolveu o aparelho ao gancho e disse,   levantando-se para abraçar  o sujeito:

-   Isso é hora de chegar  ao  trabalho,  Paulo Sérgio!  Quase na hora do almoço! Como estão as coisas, amigo?

-   Perfeitas.  Enquanto   a   gente   estiver   trabalhando  muito   e   ganhando pouco, as coisas vão às mil maravilhas.

-  Ah,  você chora de barriga cheia!  Mas  não  tardará o dia em que as trombetas irão tocar em nosso favor. Não tardará! O dia está próximo!

- Gosto de ouvir essas profecias, parece até o outro Mateus, o verdadeiro, o da Bíblia.

- Você não entende nada mesmo desse assunto. Mateus nunca foi profeta. 

Foi um grande apóstolo do Senhor. Eu ainda vou te levar na minha igreja. Mas isso é outra história. A gente tem muito o que conversar. Vamos levantando dessa cadeira que hoje eu pago o almoço.

Deixaram  o   prédio   e   dirigiram-se   no   carro   de   PS   a   um  restaurante japonês. Sentaram-se numa mesa reservada, já conhecida de ambos nesses últimos vinte anos em que  trabalhavam  juntos,  desde que Paulo Sérgio  tinha vindo  transferido do estado de Alagoas. O delegado Mateus já conhecia o restaurante há mais tempo,  pelo menos uns cinco anos antes, logo que chegara do Rio de Janeiro transferido pelo mesmo motivo do primeiro: eram identificados como policiais infiltrados dentro do movimento operário ou estudantil e tinham que sair escondidos pela porta dos fundos. Indicara a cozinha nipônica ao amigo na sua primeira saída na cidade de Belém. De lá para cá já se  havia passado muito tempo e ali, mais do que no próprio local de trabalho, os assuntos polêmicos eram debatidos, dissecados e conduzidos a uma provável solução.

Pediram um sashimi de entrada e duas doses de saquê.

-  Eu  tenho uma  bomba  gigantesca  aqui  dentro  dessa  pasta  – disse o delegado. - Mas isso fica pra depois. Me fala agora da Eloísa.

- Eu não entendo umas coisas, Mateus – disse PS, apanhando um pedaço do peixe cru com o  rashi.  -   A gente está ficando velho,  daqui  a dois meses você se aposenta,  no próximo ano sou eu...  – passou o peixe no molho,   levou-o à boca e o mastigou, fechando os olhos. - Ah, esse camorim! Vamos respeitar!  Uma hora você diz que é evangélico, e até faz pregações lá na tua igreja. Noutra hora, enche a cara, toma todas as bebidas do mundo. Só falta cair na vala.  Agora, depois de mais de vinte anos sabendo que é corno, quer que siga a mulher e a fotografe entrando no motel.  Porra, vamos respeitar!

O delegado soltou uma gargalhada.

- Olha – disse ele -, eu já te falei que estou nessa história de igreja é pra tentar dar uma organização à minha vida. Vou me aposentar em breve, quero preparar o espírito para desfrutar  de  tudo  isso que eu construí  ao  longo de  todos esses anos.  A igreja é pro coração. A gente, PS, precisa de uma igreja...

- Pra ganhar dinheiro, por exemplo?

O outro gargalhou novamente.

- O que eu não quero é perder.

- Mas você ainda acredita que essa história de flagrante livra a cara de alguém diante do juiz. Ah, vamos respeitar! – exclamou, acompanhando invejoso com o olhar um filé na chapa que aterrissava chiando e fumegante na mesa ao lado.

- Claro que não é por isso.  A Eloísa conhece os pormenores da minha vida.  Muita coisa, no começo, eu confidenciava a ela. E tenho medo de que qualquer hora ela jogue merda no ventilador. Aí a coisa vai pro brejo.

- Mas, por que ela faria isso?

- Não sei. Tenho percebido que nos últimos tempos ela tem provocado discussões do nada. Nós chegamos a passar até dez anos sem brigar. Você imagina o que 7são dez anos sem brigar? Eu aturando as escapulidas dela, aquele abominável sotaque de  interior gaúcho e aquela maldita burrice que me  leva às raias da  loucura.  Mas as coisas   estão   mudando   de   rumo.   Ultimamente   ela   tem   repetido   aquele  sútil  incessantemente.  Qualquer situação desagradável ela taxa de  funébrea.   Hoje,  quando falei com ela pelo telefone, ela repetiu o convênhamos por pelo menos três vezes. Só pra me massacrar.

- Acho que você está vendo fantasmas, convênhamos...

- Não sacaneia.Pode até haver exagero, mas, com as provas em mãos, eu a   pressionaria,   ameaçando   contar   pros   filhos.   Ela  morreria      de   pensar   que   o Mateuszinho ou a Estela,   lá nos Estados Unidos,  estavam sabendo de suas saídas – tomou o saquê de uma só vez.

- E ainda rasgando o velcro, não esqueça.

Agora os dois soltaram uma sonora gargalhada, chamando a atenção das mesas  vizinhas.  Um menino os   imitou  e  levou um beliscão de  mentira  do pai.  PS tornou, baixando a voz e arrumando os óculos de aros negros e espessos no centro da cara:

- Ah, vamos respeitar! Que  infantilidade! – virou  também  todo o copo com a bebida. – Às vezes, você tem umas obstinações... Mas, está certo. Está certo. Eu te passo amanhã as fitas e as fotografias.

Um hapossai foi pedido como prato principal e, para acompanhar, ainda que se contrapusesse à culinária oriental, um vinho tinto.

- E a bomba, Mateus?

- Está aqui – abriu a pasta e entregou as folhas a PS. - Leia isso.

Paulo Sérgio leu e disse, em seguida.

- Não entendi. Parece um plano de aula, ou de curso...  Sei lá, uma coisa sem pé nem cabeça – coçou a própria cabeça.

-  Lembra,  há mais  ou menos  dois  meses  atrás,  quando um grupo de estudantes, três estudantes, dois rapazes e uma moça, chegaram até meu gabinete, após terem bolado lá pelos corredores? O assunto era tão inusitado que ninguém nem sabia para onde encaminhá-los.  Acabaram chegando até a mim.  Passaram  inclusive  rápido pelo Serviço de Comunicação Social, você lembra?

PS olhou para cima, pensativo. Parecia buscar a resposta na luz tênue da luminária de papel e bambu que pendia do teto.

- Não lembro – disse por fim.

- Lembra sim. Você estava na minha sala e saiu quando eles entraram. Eu até comentei  com você depois que a universidade  tinha de passar uma outra redação obrigatória para diplomar os alunos que iriam sair...

- Ah, lembro. Mas, o que tem a ver com isso?

- É justamente do que eu estava falando. Isso foi escrito por aqueles três, que estão saindo da universidade. Deixa eu explicar. Isso aí é uma espécie de roteiro do trabalho de conclusão do curso deles lá na universidade. Vieram até a polícia para pedir permissão para executá-lo, temendo já o que poderia acontecer depois. O objetivo era justamente provocar  esse  tipo de coisa e  fazer  o  registro  sociológico.  Não,  é claro, nessas   proporções.  O  roteiro   é   idiota,  mas   a   idéia,   observando-se  melhor   agora,  é bastante interessante. Aí está o mérito, que eu não atentei desde o início.

- Espera lá... Estou começando a perceber. Quer dizer que o que está... – girou o dedo no ar.

- Isso mesmo. O que está saindo na televisão saiu da bosta desse papel e, o que é notável, com o meu prévio conhecimento.

8PS desmoronou na cadeira, deixando a cabeça cair para trás, no mesmo momento   em  que   a   garçonete   depositou   na  mesa   a   travessa   fumegante   do   prato escolhido. Uma outra, logo atrás, fez o mesmo com a garrafa de vinho e o balde de gelo. 

O  cheiro da   comida  o  fez   se   recompor  no mesmo  instante.  Armou-se dessa  vez   a ocidental, não com o rashi, mas com o garfo e a faca, o que foi seguido pelo delegado. 

Comeram  com  avidez,   sem  ter   tempo  de   tocar   em qualquer   assunto. 

Depois   do   almoço,   limpando   a   boca   com  o   guardanapo   de   papel,   Paulo   Sérgio exclamou, arrotando discretamente:

- Caramba! E agora? A coisa começou no final da semana passada...

- Essa televisão sem critério...

-  Não,   nem  foi   a   televisão.   É  certo  que  começou  com um desses programas sensacionalistas. Mas não tinha jeito. O povaréu já estava correndo pro lugar. 

Lembra   que   esse   povo   daqui   é   tarado   por   esse   negócio   de   santa,   romaria,   pagar promessa,  círio?...  O povo marchou para Santa  Izabel  e,   logo,   logo,  a  televisão  fez plantão lá. Os caras fizeram tanto estardalhaço que, primeiramente, forçaram o padre de lá a se pronunciar; depois,  até o arcebispo veio na televisão falar sobre o assunto.

- É, eu vi em São Paulo.

- E eu que pensei que até fosse  jogada ensaiada da própria  igreja para recuperar os fiéis. Vocês evangélicos estão roubando a multidão dos padres, Mateus.

- Não brinca que a coisa é séria, Paulo Sérgio.

- Sim, mas você não tem nada a ver com essa história. Resta agora dar proteção aos meninos e acabar de vez com a farsa.  Afinal,  não foi para isso que eles procuraram a polícia?  Não  foi  para  escapar  de  uma possível  acusação de   falsidade ideológica?

-  Mas não nessas proporções.  Ainda bem que esses papéis  ficaram na minha gaveta.  Se eu  tivesse formalizado o pedido desses alunos,  acho que  teria sido pior, porque agora todo mundo estaria me cobrando, inclusive talvez a imprensa. Olha, desde ontem,  eu não  faço outra coisa senão  refletir  sobre o assunto.  E eu  tenho um plano para que todos saiam bem dessa história. Deixa eu só ligar rápido para o dono do Sul do Pará. 

O delegado Mateus apanhou o telefone celular e achou na lista o número procurado.

- Grande irmão, é o Mateus! Estou precisando de um favor seu, urgente! 

Estou precisando despachar uma encomenda hoje à noite para São Félix. O avião já está aqui? Ótimo! Meia-noite? Meia noite então eu estou despachando. Um abraço.

Digitou um outro número. Insistiu por três vezes, até que desistiu.

- Está fora de área. Depois eu falo pessoalmente com o desembargador.

Fechou o aparelho e o guardou de novo no bolso do paletó pendurado no espaldar da cadeira vazia ao lado. A garçonete aproximou-se, iniciando o trabalho de limpeza da mesa.

- Mais alguma coisa, senhores?

- Não – disse o delegado. – Traga a conta, por favor.

Depois de deixar tanto o dinheiro da conta quanto o da gorjeta dentro da cestinha de vime, o delegado disse, levantando-se:

- Vamos voltar para a superintendência. No caminho eu te conto.

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