Tudo é monumental na saga As Crônicas de Gelo e Fogo. Seu primeiro volume, A Guerra dos Tronos, que acaba de ser lançado no Brasil pela LeYa, é uma calhamaço de quase 600 páginas – e olhe que é apenas o primeiro de uma série prevista para sete livros. Estima-se que os quatro já publicados até agora venderam, lá fora, mais de sete milhões de exemplares, sendo que o mais recente, A Feast for Crows, chegou ao topo da lista de best-sellers do jornal The New York Times. A revista Time chamou seu autor, George R. R. Martin, de “o Tolkien americano”. O produtor David Benioff definiu Game of Thrones, a vindoura série da HBO que vai levar a saga para as telinhas, como “Os Sopranos na Terra Média”.
Ironicamente, esse caráter épico da obra, que promete ser fielmente transposto para a televisão, é justamente uma resposta à frustração que fez com que o escritor abandonasse um emprego de dez anos como roteirista de tevê. Depois de iniciar sua carreira com livros bem recebidos entre os fãs do gênero fantasia, George R. R. Martin migrou para Hollywood, onde nos anos 80, esteve à frente de, entre outros, o seriado A Bela e a Fera, estrelado por Linda Hamilton (a Sarah Connor de O Exterminador do Futuro) e Ron Pearlman (já se acostumando com a maquiagem pesada bem antes de Hellboy), e o remake da clássica série sobrenatural Além da Imaginação.
“Meus roteiros eram sempre longos e caros. Eu sempre tinha que enxugá-los. Havia personagens demais, cenários demais. [Os produtores diziam:] ‘Não podemos ter todos esses cenários, não podemos ter essa cena de batalha que você escreveu porque só podemos bancar 12 extras’. Então, acabei voltando para os livros. Eu disse: ‘Não me importo com mais nada daquilo. Vou escrever a maior história que eu puder. Vai ter centenas de personagens, batalhas gigantescas, castelos magníficos e paisagens maravilhosas – todas as coisas que eu não podia ter na televisão’”, disse Martin em uma entrevista para a jornalista Maureen Ryan, do Chicago Tribune.
E Martin, de fato, tem hornado o compromisso, apresentando um enredo complexo desde o primeiro volume. A Guerra dos Tronos é ambientado em Westeros, um reino bem parecido com a Europa medieval – com a diferença de que lá o verão e o inverno duram décadas e, num passado não muito distante, criaturas fantásticas como lobos gigantes e dragões realmente existiram. Ou será que ainda existem?
A trama principal gira em torno de Eddard “Ned” Stark, nobre protetor das terras do norte, que é convocado pelo rei Robert Baratheon a ocupar o cargo de A Mão do Rei – uma espécie de chanceler, que governa em nome do monarca. Amigo pessoal de Robert, Ned relutantemente aceita a incumbência, movido pelo objetivo de proteger seu rei e investigar uma possível conspiração arquitetada pela própria rainha, a ambiciosa Cersei Lannister, e seu irmão gêmeo Jaime.
A Rainha Cersei (acima) e seu irmão Jaime (abaixo)
Aos poucos, no entanto, descobrimos que nem tudo é simples como parece: Robert é, na verdade, um usurpador – anos antes, com a ajuda de Ned, ele havia destronado Aerys II, o chamado “Rei Louco”, representante dos Targaryen, a antiga dinastia que havia unificado os sete reinos que outrora formavam Westeros.
A construção dessa intriga palaciana é claramente influenciada pela Guerra das Rosas – o período da história inglesa, na segunda metade do século XV, que foi marcado pela disputa de poder entre as casas York e Lancaster, e que inspirou algumas das peças mais famosas de William Shakespeare, como Ricardo III. Trazer alguns elementos do romance histórico (gênero explorado por autores contemporâneos como Bernard Cornwell) para a fantasia é, aliás, um dos grandes trunfos da obra de Martin. Além dos jogos políticos na corte, o escritor cria um detalhado universo em que não faltam, por exemplo, o complexo relacionamento entre senhores e vassalos, os torneios de cavaleiros e o subestimado poderio dos povos estrangeiros.
“Romances históricos são maravilhosos de ler, mas o único problema é que eu sei muito de história. Então, eu sempre sei o que vai acontecer. Se você está lendo um romance sobre a Guerra das Rosas, não importa o quanto ele seja bom ou ruim, você sempre sabe quem vai vencer. Com este tipo de coisa [o estilo adotado em As Crônicas de Gelo e Fogo], você pode surpreender as pessoas. É escrito como romance histórico, parece romance histórico, mas você não sabe o que virá a seguir”, disse Martin em entrevista para a jornalista Linda Richards, da January Magazine.
Também contribui para esse cunho surpreendente da trama o fato de que os personagens-chave são ricamente elaborados. Quem está mais próximo de ser alguém totalmente íntegro é Ned, e mesmo ele tem uma mancha em seu passado – um caso extraconjugal que resultou num filho bastardo, chamado Jon Snow. De resto, em ambos os lados, tanto entre os Stark quanto entre os Lannister há personagens dúbios, que não se encaixam na dicotomia mocinhos-bandidos – e o melhor exemplo disso é Tywin, o anão, irmão de Cersei e Jaime Lannister.
Jon Snow, filho bastardo de Stark
É preciso, ainda, destacar a engenhosidade da narrativa. A divisão em capítulos curtos, cada um focado em um personagem, evidencia a influência dos scripts televisivos na escrita de Martin, ao mesmo tempo em que torna a leitura ágil e fluida. E a forma como as subtramas – a marcha (ou melhor, a cavalgada) dos irmãos Viserys e Daenerys Targaryen para reclamar o trono, e a ameaça sobrenatural representada pelos Outros, no norte do reino – são conduzidas, paralelamente à trama principal, permite que elas culminem em um desfecho meticulosamente planejado para deixar o leitor em suspense.
Bom, eu perdi boas horas de sono, sem conseguir largar o tijolo de quase 600 páginas, e não vejo a hora de repetir a dose no próximo volume, A Fúria dos Reis. E também aguardo ansiosamente pela estreia, em 2011, da série da HBO, que terá no elenco, entre outros, Sean Bean (o Boromir de O Senhor dos Anéis) como Ned, e Lena Headey (a rainha Gorgo de 300) como Cersei. Que venha logo o inverno!
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