28 novembro, 2010

Olhai por nós - João Bosco Maia - Capítulo III


O terreno invadido, na saída do município de Santa Izabel, era parte de uma área de duzentos hectares que pertencia aos herdeiros de um velho político do estado,     falecido.  Havia ele sido prefeito de Santa  Izabel,  deputado estadual,  vice-governador,  deputado  federal,  por   três  vezes,  e  ocupara   finalmente  uma   cadeira  do senado por  duas  legislaturas.  Morrera há pouco  tempo,  aos noventa e cinco anos de idade,   desacompanhado   por   mais   de   cinco   do   hábito   de   andar,   ouvir   e   falar. 

Notabilizara-se   pela   defesa   intransigente   da   propriedade   privada,   sobretudo   da   sua, calculada em torno de vinte mil hectares, só no Pará, e no acúmulo de filhos, espalhados pelo menos em número de quarenta por esse país afora.

A propriedade em questão estava em litígio judicial desde que o velho, no Rio de Janeiro, havia se desacompanhado de vez de todos os hábitos, entre eles o de respirar. Isso tinha acontecido há precisamente dois meses. A única coisa que indicava que ali  existia um dono era um arruinado moinho de cana-de-açúcar,  que se via da estrada prestes a tombar, e o arame-farpado e a cerca de madeira,  também em estado mórbido,  que circundavam  toda a área.  Enquanto os herdeiros não se entendiam,  os chamados sem-teto resolveram ocupar os primeiros vinte e cinco hectares próximos da margem da estrada. 

Em menos de duas semanas, as moto-serras, os terçados e os machados botaram no chão  toda a mata do  lugar  e deu-se  início à demarcação dos   lotes.  Na semana seguinte, começaram a escavar os poços d’água e os primeiros barracos foram levantados.  Logo,  logo surgiu o primeiro ponto de venda de comida pronta.  Batendo numa tampa de panela com uma colher de pau, uma mulher saía anunciando o cardápio e o preço dos itens por entre as pessoas. Ao lado, um homem estendia numa espécie de balcão um amontoado de pregos e parafusos de todos os tamanhos, além de dobradiças enferrujadas, algumas conexões de tubos e cordas sortidas de juta e de náilon. No chão, junto a um pote d’água, empilhava meia dúzia de telha de amianto e, sobre as telhas, uma bola de sobras coloridas de fios elétricos, apesar de não ter energia de baixa tensão na área. Batia palmas, para chamar a atenção dos que passavam para os seus produtos. 

Dir-se-ia que ali funcionava uma loja de material de construção. Mais na frente, depois de pedir  permissão na  reunião ordinária do  final  da  tarde,  um  sujeito enfiou quatro estacas no chão, cobriu-as com um plástico preto, arrumou em baixo umas prateleiras com algumas embalagens pequenas de aguardente, também de plástico, espalhou alguns bancos de madeira e, pronto, estava inaugurado o primeiro boteco do pedaço. No dia seguinte,   um  caminhão   encostou   trazendo   uma  mesa   de   bilhar.   No   próximo,   os freqüentadores já podiam ouvir a música vinda do aparelho de som movido a pilha. 

No  final  de um mês,  cerca de duzentas famílias estavam  instaladas na área. O barraco construído, seja de tábua,  estaca,  papelão ou zinco,  funcionava como um título do lote ocupado. Quem não tinha produzido nenhuma benfeitoria, ficava de plantão no local, pois, a qualquer cochilo, outro ali se instalava e a questão ia parar na reunião do final de tarde. Ou tomava um caminho mais curto e se resolvia no tapa ali  mesmo.

E a ocupação estava plena,  completa em seus pormenores.  Seja na construção   das  moradias,  nos  bate-bocas,  nas  brigas,  nos  deixa-disso,   nos  meninos correndo  jogando bola,  nos cachorros latindo,  nos bêbados e sóbrios  transitando,  nos aleijados pedindo esmolas,  no calor   intenso das  fogueiras que pipocavam aqui  e ali consumindo as  folhas e o  tronco das árvores  derrubadas,  na  fumaça escura que por vezes   se   recusava   a   subir  e   sufocava  os  pulmões,  no cheiro da  carne  ou do peixe assando nas churrasqueiras improvisadas no chão, no barulho dos martelos, no arrastar das enxadas e ancinhos, na música barata e infernal que parecia nascer de tudo quanto é lado, no trepidar da chuva que, imperativa e salvadora, botava um ponto final em tudo isso ao cair da tarde e enchia de alívio os cinco sentidos. Seja no surgimento de leigos a dominar a agrimensura, quando fatiavam o terreno em lotes e ruas precisamente iguais; a dominar a advocacia,  no momento em que evocavam a Carta Magna para o direito elementar de morar; ou no ato de vestir a toga da justiça divina,  no  instante em que citavam que na bíblia Deus tinha feito a reforma agrária. Seja na prudência de um ou outro sábio que insistia na tese de que a invasão não poderia jamais ultrapassar os vinte e cinco hectares, sob pena de perder a minguada simpatia lá fora e aumentar a rejeição ao movimento, sobretudo dos mais miseráveis. Seja, por outro lado, na visita prevista de políticos, especialmente  os  rotulados  de  esquerda,  e  nos  seus   previsíveis   e longos discursos de apoio e solidariedade ao movimento. Seja, por fim, naquilo que acompanha impreterível  a vida  de  qualquer   invasor  que   se preze:  a notícia  de que,  no minuto seguinte, a senhora polícia estava na esquina, ostentando um mandado judicial, algumas metralhadoras e uma cerca de escudos e cassetetes, e iria invadir a área e pôr no chão o trabalho de várias semanas.

Um deputado federal levou a metade do público ao delírio e ganhou uma vaia estrondosa da outra metade, quando pulou num tronco e gritou:

- Se a polícia ousar entrar aqui, nós resistiremos até à morte!

Num outro dia qualquer,  depois de quase um mês e meio do início da invasão,  a polícia veio certamente;  porém,   representada somente na  figura de quatro policias:  um  tenente,  um sargento e dois soldados.  Eles acompanhavam o oficial  de justiça. As armas, só pistolas e revólveres, chegaram adormecidas nos coldres, enquanto que lá distante, no acostamento da rodovia, as luzes coloridas e tresloucadas  da viatura policial sinalizavam a presença do aparelho repressivo.

O funcionário da justiça, um sujeito esguio e calvo que aparentava já ter intimidade com aquele tipo de jornada, procurou pelo líder. Como já havia um contrato prévio em não  indicar  o nome das pessoas que estavam à  frente do movimento,  na intenção de  livrá-las de prisões  isoladas,  ele não obteve  resposta e  logo desistiu da procura. Arrumou a gravata desproporcional na camisa branca de mangas curtas e leu em voz alta a ordem do magistrado. Olhos e ouvidos o acompanhavam de soslaio. Logo em seguida, afixou três vias em três das cinco árvores sobreviventes. Uma quarta ficou grudada nas tábuas do boteco. Partiu. Aliás, partiram, sem olhar para trás.

O mandado citava o código civil, no que respeita à propriedade privada, e o   código   penal,   no   tocante   à   pena   para   a   sua   violação.   Era   lacônico   em   sua determinação. O povo tinha uma semana, sete dias exatos,  para desarmar os barracos, pegar os pertences e...

-...cagar fora – completava um sem-teto.

A notícia abalou os invasores, deixando-os ressabiados e cabisbaixos. Na primeira tarde, o silêncio só não foi total porque um ou outro desolado martelo teimava em bater na cabeça de um prego aqui e acolá. No lugar do trabalho, a expiar por tudo isso,   estava   o   álcool.  A  aguardente   acondicionada   dentro   das   pequenas   e   redondas embalagens de plástico evaporava amarga na língua de seus consumidores. Feito insetos sobre uma carcaça já destituída de sabor, lotavam as dependências do boteco.

- Só resta beber mesmo... – dizia desolado um deles. – Desce mais uma buchodinha dessas...

O ânimo, todavia, voltou a ascender quando um dos sem-teto, já na manhã   seguinte,   arrancou o mandado  judicial  da  parede  do boteco,   esfregou-o nos colhões e o rasgou em picadinho. As outras três vias haviam se desmanchado com o temporal  que açoitara   sem piedade  o dorso da madrugada.  Aos poucos  o  ritmo  foi voltando ao normal; primeiro os meninos correndo, depois as fogueiras queimando, a fumaça   sufocando,   os   cachorros   latindo,   as  marteladas,   as   enxadas,   os   ancinhos,   a música... e, no fim da tarde, após a chuva, a reunião, a mesma reunião ordinária, onde os políticos tornaram a parecer, onde o mesmo deputado federal voltou a bradar, mais cauteloso dessa vez:

- Nós estaremos juntos pro que der e vier, companheiros!

Mas a situação, por mais que parecesse tranqüila, não voltou tão normal assim. Tanto que se percebiam já duas desistências. Duas famílias inteiras não voltaram da dormida lá da cidade e os esqueletos dos barracos ficaram aguardando por um teto. 

Outros, entre um gole de cachaça e uma partida de bilhar no boteco, ofertavam o seu lote por pouco mais de uma grade de cerveja, a moeda do local, dispostos a não esperar o cumprimento da ordem judicial. Um chegou até perder o seu lote, sem barraco, numa partida   de  bilhar.  Saiu depois  sem graça   rumo  da  rodovia.  O  vencedor   trocou-o imediatamente por uma bicicleta velha.

Um  sujeito comprou  três  lotes de uma só vez,   todos  com barracos,  e pagou por  eles um botijão de gás cheio e um  rádio-relógio digital,  onde o segundo elemento não funcionava. Já uma senhora teve mais sorte e conseguiu passar o seu, sem nenhuma construção,  pelo preço equivalente a três grades de cervejas.  O casal  que o comprou pagou para que alguém o vigiasse durante a noite e retornou no segundo dia, incorporando-se imediatamente à rotina dos demais invasores. 

No dia marcado para o cumprimento da ordem do juiz, os sem-teto acordaram cedo e  fingiam uma certa normalidade,  enquanto  se dispunham em  suas tarefas. Faziam que trabalhavam, zanzando daqui para acolá. Virava e mexia, olhavam para   a   estrada,   aguardando  que  de repente os carros da polícia parassem  no acostamento, vomitassem por suas portas um batalhão de soldados e que esses, numa avalanche de murros e pontapés, tiros e cassetetes, levassem por terra o velho sonho da casa própria.  E o que  fazer   se  isto ocorresse? Na verdade,  nada  ficou acertado nas reuniões do final  de  tarde;  aliás,  as próprias reuniões foram deixando de existir e as lideranças, por outro lado, caíram dizimadas pela repetição do discurso e pela ausência de ouvidos.  Os  próprios  políticos   também não deram mais  as  caras,   limitando-se a saberem de longe as notícias que circulavam por ali.

A manhã   transcorreu   acompanhada   pela   aflição   dos   sobressaltos.  A comida  do almoço desceu com  sofreguidão e  sem  sabor.  O  relaxamento  real     se aproximou   quando   a   tarde,   que   desta   vez   não   teve   a   companhia   da   chuva,   foi amornando suavemente os raios do sol no horizonte. Foi quando a noite cumpriu o seu destino e se abateu  impune e  fria sobre o  local.  Fria como a  testa de um defunto e rigorosamente de mal com todas as estrelas. Era sinal de chuva. Logo os que optavam por  não   dormir   na   cidade,   agasalhando-se   por   ali  mesmo,   estavam  submersos  na escuridão e no sono profundo. Mesmos os cães não ousaram ladrar nessa noite; noite que estava comprometida apenas com os grilos,  com os sapos e,  mais  tarde,  com os grossos pingos da chuva, que acabaria desmoronando soberana.

O outro dia trouxe mais tranqüilidade. E assim foi no próximo. E assim foi no seguinte.   Na metade da semana, haviam colocado a justiça e a polícia não no completo esquecimento, que dele não se podia desfrutar, mas num plano dissociado pelo menos das tarefas mais urgentes. Prova disso é que os martelos estavam a todo vapor e a música, conforme eles apreciavam, alcançava o último volume, arruinando o ouvido de um ou outro que não a tolerava, na mesma proporção que espantava os passarinhos. As aves, assim como as aranhas, os insetos, as cobras, os lagartos e os pequenos roedores, estavam  atarantadas   com  aquela   súbita  devastação.  Sem querer,   em  contraponto  ao propósito daquela gente, foram transformadas também em sem-teto.

Tudo   caminhava   em  perfeita   harmonia.  Os   políticos   voltaram mais freqüentes   e   os   lotes   não   deixaram  de   ser   negociados,   não   obstante   fossem mais escassos, tendo sua cotação subido a olhos vistos no mercado imobiliário que acabara por se transformar o Bar da Resistência, como haviam batizado o boteco. Sem ter tal intenção, além do lazer, o estabelecimento terminara se convertendo na referência das decisões econômicas e políticas do movimento de invasão.

Tudo caminhava em perfeita harmonia, até o dia em que aquele episódio veio mudar completamente a história do lugar.

Naquele exato dia, o sol parecia ter acordado antes do horário e convocava vibrante as pessoas para o trabalho. O vigor da manhã transmitia aos braços dos homens uma energia adicional que os agitava e os fazia carregar tábuas, pregar ripas  e pernas-mancas  no alto da escada,  arrastar  os   troncos  e passar   fogo nas  primeiras fogueiras...

Por volta das nove da manhã, quando a invasão estava a pleno pulmões e a grossa fumaça do início já reduzira seu efeito, um grupo de pessoas veio correndo lá do final da parte invadida, lá próximo onde deslizava um pequeno córrego. Uma mulher vinha à frente, arregaçava as saias e gritava feito uma louca:

- Milagre! Um milagre! Acharam a Mãe de Deus!

Todas as atenções ali perto do Bar da Resistência se voltaram para ela. 

Ela juntou do chão uma criança nua que brincava, limpou-lhe o catarro no nariz com a ponta da saia, rodou nos calcanhares e desabou a correr de volta para lá. O restante do grupo se espalhou, tentou explicar o acontecido e acabou criando mais aflição nos que ouviam.  Num  piscar  de   olhos,   todos   largaram  as   ferramentas   e   tomaram  a  mesma direção da mulher com a criança.

No local, onde um mar de cabeças já se formava, um homem, postado no centro da multidão sobre um caixote de madeira, exibia a imagem de Nossa Senhora, fazendo um círculo sobre seus próprios calcanhares.  Tinha  tomado para si  a postura solene   de   um  bispo.  A  imagem  estava   vestida   com  um manto   azul   decorado   com detalhes dourados. O tecido acetinado estava visivelmente sujo de terra.

- É a Mãe de Deus, meus amigos! – o homem exclamava num tom de choro.

Em seu redor, as mulheres também choravam e entoavam um hino que falava justamente na Mãe de Deus.

No céu, no céu

Com minha mãe estarei...

O hino, que furtava plangente o silêncio da manhã, era acompanhado pela imensa maioria. O fervor tomava conta dos lábios e das mãos. Muitos dos que se encontravam mais próximos optaram por ajoelhar-se diante da imagem, sem deixar de fitá-la por nem um momento.

A imagem tinha sido encontrada por um casal, o mesmo que se achava agora ao lado do homem que a mostrava para o povo. O rapaz usava barba e bigode e parecia não ter mais do que vinte e cinco anos. Tinha os cabelos negros e longos, mas a pele era branca, tendendo à parda. A moça, dentro de uma bermuda jeans, não deveria possuir mais do que a idade dele, mesmo que a pintura loura e extravagante do cabelo indicasse um pouco mais.  O rapaz cavava o segundo buraco que iria receber um dos esteios de sustentação da casa, quando tocara com a draga em algo enterrado a cerca de dois palmos da superfície. Mais que depressa chamara a companheira e mostrara a ela a ponta do manto azul que começava a aparecer. Os dois, enquanto chamavam a atenção dos que trabalhavam ali perto, ajoelharam-se e terminaram o serviço com as próprias mãos.   De   repente,   a   imagem   subira   lentamente   nas   mãos   dele.   Os   olhos   não acreditavam.  Bem devagar, ele fora se levantado sem conseguir dizer uma palavra. A moça é quem falara, diante dos olhares atônitos à sua volta:
- Meus Deus, é Nossa Senhora, Roberto! É Nossa Senhora, minha gente!

Permanecera ajoelhada com os braços esticados para o céu. Nesse exato instante,   passavam  no   local   dois   aleijados,   deambulando   com  dificuldade   em  suas muletas.   Vinham   em   sentidos   opostos,   pedindo   esmolas   para   as   pessoas   que trabalhavam ali perto. Ao avistarem a imagem da santa, largaram inexplicavelmente no chão  as  muletas  e  correram curadas  da  enfermidade  em comum para onde  a   santa estava. Caíram em pranto a seus pés.

- É um milagre! – dissera Roberto por fim, banhado em lágrimas. - É um milagre, meu povo! 

-  É Nossa Senhora,  gente!  A mãe de Nosso Senhor!  – exclamara um outro rapaz, que trazia ao ombro uma mochila de náilon com uma abertura esquisita em uma das pontas. 

- Minha mãezinha querida, a senhora me curou do aleijão – falara a ex-deficiente em pranto convulsivo.
Ela se levantara e pusera-se a caminhar em círculos.

- Olhem, minha gente! Eu estou andando. Obrigado, minha mãe do céu!

O ex-aleijado fizera a mesma coisa. Além de andar, dera uns saltos no ar.

-  É  a  primeira  vez  que   eu  ando  como gente  na minha  vida.  Eu uso aquelas muletas desde criancinha. Agora eu vou poder trabalhar normalmente e não vou precisar mais pedir esmolas. Obrigado, minha Mãe de Deus!

Dirigira-se   até   à   imagem   e   cobrira-lhe   de   beijos.   Uma   mulher aproximara-se também e dissera que, no momento em que vira a santa, havia passado a dor infernal que estava sentindo na coluna. Dera seu depoimento, curvando-se sobre si mesma uma dúzia de vezes.  As  lágrimas  inundaram-lhe os olhos no instante em que relatara que, por conta da doença, não trabalhava há cerca de uma semana.

- Agora vou terminar de construir meu barraco, minha mãezinha.

E os milagres iam acontecendo...

Um sexagenário pediu a palavra e falou que a sua asma havia sumido. 

Estufou o peito de ar para dar o exemplo de como estavam funcionando bem suas vias respiratórias.  Já outra anciã garantiu que estava livre da dor de cabeça que há pouco a massacrava  dentro   de   uma   rede.   Como toda palavra parecia ter de vir acompanhada de   um  gesto   de   prova,   ela   batia   repetidas   vezes   no   alto   da   cabeça, mostrando que não se tratava de mera delitescência. 

- Gente – disse outra mulher -, olhem, a dor nos meus dedos passou de repente – abria e fechava as mãos. - Eu não tava conseguindo nem pegar no terçado.

Pediu por empréstimo a dita ferramenta a um homem ao lado e a cravou num tronco tombado no chão. O gesto foi seguido por um vigoroso aplauso.

E assim outras pessoas foram se aproximando e logo a notícia do achado e dos milagres tomou conta de toda a invasão. Extrapolou a cerca de arame-farpado e ganhou a cidade de Santa  Izabel  ainda pela manhã.  Dali,  das  ruas por  onde passou, arrastou das casas uma verdadeira massa que passou a vir a pé pela rodovia, começando a encher o terreno invadido.
A santa, após uma ligeira discussão entre o casal  que a encontrou e as pessoas que testemunharam o fato, foi colocada sobre uma mesa coberta por uma toalha branca,  no mesmo  local  do achado.  Sobre o altar   improvisado,  amparada por  quatro estacas, estenderam uma lona preta de plástico. No final da manhã, quando o cheiro de um charque assando inundava o ar, acabaram de construir em mutirão uma cerca sobre as linhas divisórias do terreno, deixando apenas um pequeno portão na entrada. Ficou certo de que o casal   iria ocupar  um outro  terreno e aquele  ficaria exclusivo para a morada da santa, onde construiriam futuramente uma pequena capela.

Quando a tarde estava de partida, mais de mil pessoas disputavam lugar na cerca para ver a imagem. Três pessoas, por vez, podiam entrar e tocar-lhe o manto. À noite, as velas iluminaram o local e a ladainha podia ser escutada ao longe, plangente e fervorosa.

No outro dia, o número de pessoas dobrou e, no meio da tarde, trouxe a primeira  televisão para cobrir  a história do achado e sobretudo dos milagres que se multiplicavam incessantemente. O assunto já tinha se arrastado pelas cidades vizinhas e atingira inclusive a capital do estado.

De lá vieram o repórter e o cinegrafista e, no outro dia à tarde, a matéria foi   exibida   num  programa   sensacionalista,   dividindo   o   espaço   com  as   entrevistas humilhantes feitas a presos recém capturados.

Daí  por  diante,  outros canais  vieram,  mais outras  milhares de pessoas foram chegando e, em uma semana, o assunto ficou conhecido de todo o país.

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