19 novembro, 2010

Olhai por nós - João Bosco Maia

Olhai por nós
João Bosco Maia

Capítulo I

Todo aquele trecho, em que predominavam iluminados os arranha-céus, estava dominado por um barulho  infernal.  O motivo era o chamado carnaval  fora de época, onde o trio elétrico percorria morosamente toda a longa avenida, levando mais ou menos duas horas para chegar de uma ponta a outra. Depois era sucedido por outro, cantando a mesma música e arrastando a mesma multidão.
Para as ruas adjacentes, o barulho vazava dando de encontro com mais um canavial de gente que chegava em sentido contrário.

O  motorista,   numa   dessas   ruas,   teve   que   repetir   por   três   vezes   a seqüência de toques na buzina para que o porteiro do prédio o escutasse. Sonolento, ele reconheceu o carro e abriu da guarita o portão eletrônico.  O veículo,  com os vidros fechados, passou pelo portão e começou a descer a rampa para a garagem quando os ponteiros do relógio se aproximavam das três da manhã e mais um trio elétrico, dessa vez com uma voz feminina, fazia uma parada justamente no cruzamento mais próximo.

O elevador subiu, cortando um pouco do barulho chegado lá de fora. Mas o som alto retornou quase igual no momento em que a porta do compartimento móvel se abriu e o vulto ganhou o corredor.  O espaço achava-se na penumbra,   sem nenhum cheiro.  Somente uma  luzinha deixava cair  discreta o seu  facho,  no  fim do corredor, perto da janela onde o vidro amenizava o efeito das guitarras e da voz aguda da cantora.

O vulto tomou o sentido oposto à parca iluminação.  Calçou um par de luvas de borracha e,  apesar do escuro, não teve dificuldade em introduzir a chave na porta. Abriu-a, bem devagar. A sala se encontrava com as lâmpadas apagadas, mas a luz que saía  lá da porta entreaberta de um dos quartos,  e ganhava o pequeno corredor, permitia a movimentação segura por entre os móveis. Os passos seguiram a iluminação. 

Com a mão direita,  o espectro afastou suavemente a porta, vislumbrando um homem que dormia nu com a cara enfiada na parede. Sob a luz do abajur do criado mudo, as nádegas brancas não destoavam muito da cor parda do resto do corpo. Envolvido no frio do ar-condicionado, ele repousava a cabeça e o álcool numa trouxa feita com o lençol, enquanto os  travesseiros estavam caídos no chão,  ao  lado de dois copos vazios e da garrafa com dois dedos de vodka. Mesmo com o barulho vindo lá de fora, escutava-se-lhe o ronco reverberando na parede.

Com a mão esquerda, o vulto retirou do bolso uma pequena pistola e se aproximou da cama de casal colada à parede. Chegou a arma o mais que pôde da cabeça do sujeito e disparou seco. Um tiro só.

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