A ENCANTADORA
Insólito
Escrito por Camila Fernandes Naquela noite, quando ele pediu abrigo na casa de meu pai, eu olhei em seus olhos e soube que deveria ser sua até meu último alento. Por isso, não hesitei em levá-lo pela mão ao velho celeiro, onde nos entrelaçamos como serpentes sobre a palha e uivamos como lobos até o amanhecer.
Eu já não era uma donzela então, mas meu conhecimento do corpo do homem deu-lhe prazer repetidas vezes e ele nunca me perguntou quem haviam sido os outros. Isso não importava. Foi assim ao longo de todo um ano. Ele vinha da fazenda onde trabalhava para o celeiro. Lá, eu o esperava como a terra espera a chuva, e nós ríamos, nus, comendo as amoras que eu trazia do bosque.
No inverno seguinte, meu velho pai faleceu da tosse sanguinolenta que eu pudera apenas tratar com meus elixires e vapores, mas nunca curar. Fiquei sozinha. Então, disse ao meu amante que ele deveria ser o novo homem da casa.Sei que me aceitaria prontamente como sua mulher, mas ele morava ainda com a mãe, alma triste que não queria ver seu menino tornar-se um varão. Ela me chamou de messalina e encantadora de homens e disse que ele seria infeliz ao meu lado, pois eu me deitaria em outras camas e ele teria de alimentar os filhos de outros homens. Ela não abençoou nossa união.
Mas um corvo se sentou no meu portão e me disse que eu devia orar para a deusa esquecida, senhora da vida e da morte, adorada por minha avó e pela avó de minha avó. Assim, entrei no bosque, procurei a erva que mata e dela extraí o veneno verde.No mercado, furtei o lenço que a mãe de meu amado levava nos cabelos e o levei para o meu local secreto, na mata, onde o mergulhei na vasilha de veneno e rezei três vezes por meu sucesso.
À noite, aquela que me negara o que eu mais queria fechou os olhos num sono profundo e não os abriu mais. Eu também gostaria de partir assim, um dia, sem sofrimento.Seu filho buscou conforto em meu regaço e não mais deixou minha casa.
Levamos uma boa vida. Plantei flores para a deusa sob a janela, em agradecimento, e meu homem gostava do perfume que enchia a casa. Ele tosava os cordeiros e eu fiava a lã. Ele cortava a lenha e eu preparava seu banho quente e esfregava suas costas e recebia sua semente em meu corpo.Tinha seus companheiros na cidade. Quando chegava tarde da noite, bêbado, trocando as palavras e as pernas, eu o despia e o punha na cama como a um bebê.
Eu era sua fêmea, sua amiga e sua mãe. Ninguém poderia amá-lo como eu o amava.Em algum momento, porém, ele duvidou disso. Eu soube quando chegou com um olhar diferente. Estava sóbrio e não procurou por meu abraço.
De manhã, cheirei sua camisa. Perguntei-lhe quem era ela. Ele disse que não havia ninguém.Era mentira. Achei três fios de cabelos presos ao colarinho de sua camisa. Longos e louros. Nem meus, nem dele.
Eu a encontrei na praça da igreja, voltando da missa, na manhã de domingo. Era pouco mais do que uma menina, esguia e branca, a cabeleira dourada presa num toucado simples, os seios atrevidos espetando o vestido. Mais moça do que eu. Certamente era leviana como todas as jovens formosas.Toquei em seu ombro e ordenei que não tornasse a ver aquele homem. Que nunca mais se aproximasse dele.
Ela se voltou, mas saí com pressa e não deixei que conhecesse meu rosto.Meu marido descascava uma maçã na soleira de nossa porta quando cheguei. Ajoelhei-me por trás dele e o envolvi em meus braços. Admiti que ela era bela e cheia de vida, mas não o amaria para sempre. Não como eu. Que não voltasse a procurá-la.
Mas ele não seguiu meu conselho. Por mais de uma vez eu o vi retornar com o raiar do dia às suas costas e o cheiro da amante em suas roupas. A menina também ignorara meu aviso.Por isso, esperei o início do novo ciclo da Lua, tomei os três fios de cabelo e os meti no barro. Do barro, fiz uma boneca. Sobre ela, joguei urina e excremento de cão doente durante todas as quatro fases.
Foi assim que meu marido voltou a passar suas noites em casa e a pedir minhas carícias. Não visitou mais a amante. Os cabelos dela haviam se tornado cinzentos, seu rosto se desfigurara com vincos e furúnculos e seus seios, outrora viçosos, caíram como os peitos muito sugados de uma velha ama-de-leite. Sei disso porque fui ao milharal do vizinho e os corvos me contaram. Nada disse a meu amado. Acreditava que ele tivesse aprendido sua lição.
Nossa vida voltou a ter luz. Foi quando a deusa decidiu nos abençoar com um filho. Quando eu disse a ele que minhas regras já não vinham, ele sorriu e chorou e me beijou no umbigo.Mas a dádiva tinha uma dupla face e eu padeci das dores que acompanham certas mães antes de se tornarem mães. A expectativa fez de mim uma mulher ansiosa que já comia por dois. Minha barriga ainda não crescera quando meu corpo se tornou grande e pesado e irritado ao toque, e meu marido deixou de me procurar.
Não podia culpá-lo, pois sua natureza masculina mandava que fecundasse todas fêmeas no grande pasto da Criação. Mas eu precisava dele ao meu lado naquele momento como jamais precisara antes. Devia mostrar-lhe o tamanho do meu amor, fazer com que compreendesse que era maior do que a desonra da esposa traída, o sofrimento da mulher desprezada ou o encanto das moças que se debruçavam noutras janelas.Naquela noite eu fui à cidade, seguindo meu homem a distância, para testemunhar seu encontro adúltero. Essa amante não era tão jovem. Era uma viúva já madura, forte, com cabelos cor de avelã.
Voltei à sua casa pela manhã, bem cedo. No varal dos fundos havia uma anágua branca recém-lavada. Serviria. Levei-a comigo.À tarde, mandei matar um cordeiro e guardei seu bucho.
À noite, ceamos sua carne e depois, com a Lua alta, eu meti a anágua no estômago do animal e o deixei em meu local secreto para que apodrecesse.No dia seguinte, a doença começou a consumir devagar o corpo da mulher. Quando o último pedaço de entranha do animal se desfez sob as formigas e os besouros, ela faleceu.
Destruir as amantes de meu marido poderia tomar anos de minha vida. Ele sempre encontraria outra que o agradasse e eu seria sempre grande e desajeitada, carregando e parindo sua prole. Eu sabia que o novo castigo precisaria ser maior, por muito que me doesse executá-lo.Por isso, entrei no bosque e colhi as ervas proibidas. Orei por toda uma manhã e toda uma tarde, pedindo perdão pelo que já fizera e pelo que ia fazer. Depois, fervi água do poço, preparei uma forte infusão e a bebi, pedindo à deusa que aceitasse de volta a criança que dormia em meu ventre.
A dor me despertou de madrugada e eu gritei por longas horas, vendo meu corpo verter um sangue cheio de nódoas negras. Meu marido chorou até o amanhecer, ora ajoelhado aos meus pés, ora lavando meu corpo com água fervida. Ele foi o melhor dos homens nesse momento e mandou que o criado fosse à cidade chamar a parteira para cuidar de mim.Logo que chegou, a mulher disse que não havia nada a ser feito, pois eu não desejava aquela criança e por isso a estava expulsando do meu corpo. Se ele queria que eu sobrevivesse, disse ela, deveria deixar que eu repousasse até me recuperar e me servir fígado cozido e sopa de galinha. Também seria bom que tomasse chás calmantes e banhos quentes. Ela ofereceu a própria filha como enfermeira. Era boa no trato de moléstias, disse ela, e poderia ajudar no serviço da casa até que eu me curasse.
Quando ela nos deixou, meu marido perguntou por que eu tinha feito aquilo. Seus olhos estavam vermelhos. Respondi que ele precisava cuidar do que tinha em casa em lugar de procurar distração fora dela.No dia seguinte, a filha da parteira começou a trabalhar para mim. Era muito magra e tinha pescoço longo e olhos encovados, mas cumpria as tarefas da casa em silêncio, fazia boa comida e me ajudava a me lavar. Ela tornou minha aflição suportável.
Meu homem também era quieto agora e vagava pela casa como uma sombra. Eu sabia que estava infeliz porque seu filho não ia mais nascer, mas era nessa infelicidade que ele reaprenderia a zelar por sua família.Logo que me senti mais forte, procurei por seu corpo na noite e ele não me rejeitou. Nós nos amamos sem palavras e refizemos nos braços um do outro um pacto mudo de afeto e lealdade. Bastava de noites noutras camas e beijos noutras bocas. Senti que voltaríamos a ser felizes.
Naquela manhã, um corvo entrou no meu quarto e pousou na cabeceira da minha cama. Ele me contou que a deusa ia me mandar uma criança.Percebi que era verdade algumas semanas depois. Gritei de alegria. Meu marido voltou a sorrir. Apesar das minhas falhas, a divindade me amava, pensei.
A filha da parteira seria minha criada e enfermeira durante os nove meses e por quanto tempo eu necessitasse de seu auxílio depois disso. As dores e enjôos voltaram, mas ela cuidou de mim. Meu marido não saía mais à noite. Eu adormecia olhando para seu rosto e, quando despertava, ele ainda estava ao meu lado.Foi neste lar de ternura e harmonia que você nasceu, minha filha. Eu e seu pai já a amávamos quando a tomamos nos braços pela primeira vez. Nunca uma criança foi tão bem-vinda a este mundo.
Mas eu havia cometido muitos erros, minha menina querida, e a mesma dádiva que a trouxe para mim fez-se maldição quando levou minha saúde. Eu quase não tinha leite para você e nem sempre podia nutri-la. A parteira trouxe sua filha mais velha, que fora deixada por um marido cruel e dera à luz um menino morto. Tinha leite para mais de uma criança em seus seios.Ela foi a sua mãe mais do que eu, pois logo eu mal podia tê-la em meu colo. Vieram as febres freqüentes e as dores no abdome, nas costas, na garganta, na cabeça. Os abscessos por todo o corpo. A fraqueza. A comida regurgitada.
Meu marido não podia mais dormir ao meu lado. Eu cheirava mal e sujava a cama. Então, ele passava as noites no quarto menor. Num leito junto ao seu, menina querida. Para ficar perto de você e niná-la quando chorasse no meio da noite.
Num leito junto ao da sua ama-de-leite. Para ficar perto dela e... Meus ouvidos ainda eram bons, filha, e eu sabia o que seu pai estava fazendo. O que voltara a fazer. Seus lábios pequeninos de bebê não eram os únicos a se aconchegar naquele regaço e sugar aquelas mamas. De dia, a mulher sorria para mim, condoída; mas, à noite, comia no prato que era meu.
Para mim, foram meses de uma agonia que não se abrandava. Para eles, meses de uma espera jubilosa. Eles esperavam o meu fim.Eu só não sabia quem estava me trazendo, aos poucos, esse fim. Podiam ser as famílias das mulheres a quem eu prejudicara, a uma, destruindo a beleza, a outra, dando uma morte dolorosa. Podia ser alguém próximo a mim. Alguém que profanara meu lugar secreto no bosque e conhecia as artes da cura e da doença como eu e minha avó e a avó de minha avó. Alguém que era bom no trato das moléstias... alguém cuja irmã se deitava com o marido da mulher que matava suas amantes e não poderia ser detida senão pelos mesmos meios.
Eles estão me matando. Meu amado e as duas serpentes que eu acolhi em minha casa.Ontem, pela manhã, contei ao seu pai que você logo será órfã de mãe. Ele não me olhou nos olhos. Nada disse. Mas, à noite, respondeu que eu serei enterrada sob as árvores de que tanto gosto e que sua amásia ficará nesta casa e cuidará de você como se fosse sua própria filha.
Você deveria ser aquela a quem eu ensinaria tudo o que minha mãe me ensinou e que ela aprendeu com a mãe dela. Aquela que eu levaria ao meu local secreto e a quem mostraria meus segredos. A você, filha da minha carne, e a ninguém mais.Dói-me na alma e no corpo pensar em perdê-la para uma madrasta vulgar e um pai desleal. Eu ofereci a ele meu amor e minha vida e recebi apenas traição, desprezo e morte. Não posso partir sabendo que ele será feliz sem mim, filha querida, e que quando crescer você não saberá o nome de sua verdadeira mãe. Não depois de tudo o que ele fez. Não depois de tudo o que eu fiz.
Por isso é que, esta noite, esperei que todos se recolhessem, reuni as poucas forças que me restavam e fui para o bosque. Fiz minha última oração e minha última colheita. Soquei muitas folhas e as fervi na água. São as folhas do sono-que-não-termina. Folhas que matam.Faço dessa infusão minha libação derradeira.
Agora, enquanto eu a recolho de seu berço, querida, ela age em meu corpo, preparando-o para um fim sereno.Agora, enquanto eu a aconchego em meu seio e lhe ofereço o pouco leite que tenho, ela agirá no seu.
Eu a amo. Ninguém neste mundo poderá amá-la tanto assim.
Venha comigo, meu amor. Não vai doer.
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Camila Fernandes é escritora e revisora de textos, enquanto seu alter ego, Mila F., é ilustradora. Nascida e residente em São Paulo – SP(SP), lançou contos no NecroZine e nos livros Necrópole – Histórias de Vampiros (2005), Necrópole – Histórias de Fantasmas (2006), Visões de São Paulo – Ensaios Urbanos (2006), Necrópole – Histórias de Bruxaria (2008) e Paradigmas – Volume I (2009). Seu trabalho alia o rotineiro ao bizarro, o realista ao onírico. No momento, está preparando um livro solo, ilustrando como freelancer e fazendo capas para a coleção Paradigmas. Segue abaixo o blog da autora:
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