19 janeiro, 2011

RPG, ou os bastidores da maior escola de contadores de histórias já criada…

RPG.


Talvez você conheça essa sigla porque ande gastando centenas de suas horas com a Square Enix. Talvez porque seja um saudosista de livros em primeira pessoa, cheios de finais e opções diferentes de trajetória para o protagonista. Talvez porque tenha lido matérias policiais mal direcionadas.

Talvez porque tenha dor nas costas.

Não importa.

O caso é que hoje nós vamos falar sobre o que você deveria pensar de verdade  ao escutar essa sigla. Sobre a trajetória e peculiaridades do maior jogo de imaginação já criado pela humanidade.
Do verdadeiro papel da maior escola de contadores de histórias já criada.

 


História de Criação

É meio lendário o que se conhece sobre a motivação da criação desse jogo, mas vamos lá. Reza a lenda que Gary Gygax e Dave Ameson jogavam um jogo de tabuleiros chamado “Chainmail” (e se você é RPGista de mesa ou de games, provavelmente deve saber que isso significa: “cota de malha”), quando após uma grande batalha sobraram apenas três guerreiros do exército original. Como a ideia inicial seria tomar uma masmorra, um deles teria comentado que aqueles guerreiros poderiam promover uma invasão subterrânea na masmorra, ou qualquer coisa do tipo.

Logo, em vez de continuar aquela aventura de combate em massa, eles tiveram a grande sacada de narrar a aventura subterrânea daqueles três personagens, iniciando o que viria a se tornar em 1974 o RPG mais famoso do mundo: o Dungeon & Dragons.

Depois que a coisa toda começou, alguns híbridos começaram a surgir no mercado, mas ainda sem tanta repercussão.

Curiosamente, em 1980, o ainda jovem e iniciante Tom Hanks fez parte de uma pérola chamada “Mazes and Monster”, que mostrava a história de um jogo de RPG.

 
(Tom Hanks ainda em nível de fama 1…)

No Brasil, apenas saber do que se tratava RPG nessa época já o tornava um cult dentre o meio nerd; conseguir umas xerox de um material pirata (sempre em inglês) então o tornava um God of War!

Eu me lembro da primeira vez em que ouvi falar dele. Um amigo meu nerd chamado… bem… Luke, virou e explicou: “é um jogo difícil de explicar! Você pode fazer de tudo! Se você quiser, sei lá, mandar seu personagem cuspir no chão, você pode!”.

E eu sem entender como aquilo seria possível, imaginei naquela década de 80 o que seria hoje a série GTA.
Mas então veio 1983.

Essa data não deve ser esquecida.

Jamais.

Porque foi essa data que trouxe ao Brasil o maior presente que o Dungeon & Dragons poderia dar à cultura pop brasileira. Porque foi nessa data que surgiu Dungeons & Dragons Cartoon. Mas se esse nome não lhe disser nada, provavelmente seja porque você deve conhecê-lo pelo outro.
O “Caverna do Dragão”.

 
(Cavernas… e… Dragões…)

Não vou me estender nos comentários dessa animação porque teremos ainda um post por aqui só para ela. O que basta dizer é que o sucesso do fenômeno no país foi tamanho que se tornou provavelmente a animação mais amada de toda uma geração.

E ajudou a popularizar o RPG de uma maneira grandiosa.

O fato é que “Dungeons & Dragons” não foi apenas o primeiro RPG do mundo, ele também estabeleceu todos os conceitos que chegaram a se tornar clichês associados a eles, do qual falaremos mais abaixo.

No Brasil, contudo, apesar de “Caverna do Dragão” aguçar a curiosidade, nem todos sabiam que se baseava em um RPG. Aliás, pouca gente mesmo ainda sabia o que era isso!

E foi então que elas foram apresentadas a algo muito curioso, que mais uma vez virou o jogo.
Chegavam por aqui as Aventuras Fantásticas.

Livros-Jogos

Chamados por aqui de “livro-jogo” ou “aventura solo”, a série Aventuras Fantásticas apresentou o conceito do RPG de fato para milhares de brasileiros. Através daqueles livros de múltiplas opções, o leitor compreendia quais os princípios daquele jogo de imaginação.

A situação era assim: os livros apresentavam um cenário que podia variar desde uma cidadela de ladrões (os títulos eram um melhor do que o outro) até uma metrópole futurista. Apresentava-se o protagonista, e o que seria o grande objetivo que ele perseguiria em sua jornada.

Então nós assumíamos o papel desse protagonista (os livros eram sempre em 1ª pessoa) e decidíamos de acordo com duas, três ou quatro opções, por onde ele deveria seguir, dentre centenas de mini-parágrafos numerados no livro. Por exemplo:

Você entra na cidade e percebe ir embora os últimos raios de sol.
* Se você quiser ir para a Taberna do Pé Cansado, vá para o trecho 35
* Se preferir seguir viagem assim mesmo, vá para a 245

Era interessante porque para alcançar esse grande objetivo, você ajudava o protagonista a se decidir por diversas sidequests; missões paralelas com o intuito de seu personagem ganhar mais conhecimento ou itens para ajudá-lo na batalha final.

Claro que tinha muito roubalheira. Era comum o marmanjão ler o livro cheio de dedos enfiados pelas páginas, parecendo o polvo Paul, conferindo quais as melhores opções, caso se arrependesse da 1ª opção escolhida. Sem contar que quase ninguém rolava dadinhos de verdade cada vez que aparecia um inimigo a ser enfrentado. Simplesmente pulava direto para o mini-parágrafo de vitória.

 
(admita, você já roubou muito nesses livros…)

Hoje em dia a editora Jambô relançou essas coleções, com novas capas, mas o mesmo espírito, chamando-os de Fighting Fantasy (se quiser ver como ficou essa nova coleção, só clicar aqui).

Alguns anos depois, esse mesmo conceito quando colocado em video interativo gerou o que viria ser chamado RPGs eletrônicos (e posteriormente os MMORPGs) para diferencia-los do RPG de mesa.

Aprendendo a ideia da coisa, os nerds resolveram sair das aventuras solos e arriscar suas próprias criações com grupos de amigos igualmente nerds. Não adiantava, como citado, no início o RPG era algo bem restrito a esse gueto.

Mas quando os nerds começaram a mestrar suas próprias aventuras, eles mostraram seu grande poder.
E então o RPG foi começando a se tornar popular.
Anos mais tarde, ele se tornaria pop.
 
(A fantasia nunca termina…)

A Mecânica

Ok, mas como funciona esse negócio?

RPG é uma sigla para Role Playing Game, que significaria “jogo de interpretação de papéis”.

Explicação rápida: primeiro é preciso um grupo de jogadores que pode variar de 3 a 6. Não existe um limite, mas quanto mais gente, menos controle se tem.

Um desse jogadores será o mestre. Se RPG fosse um videogame, o mestre seria o console propriamente dito. Seria quem define o cenário, as regras desse cenário, os grandes vilões e trama da história a ser narrada (percebe-se desde já a semelhança com qualquer estrutura narrativa?).

 
(Quem é o mestre?)

Os outros serão os jogadores que irão criar seus personagens, de acordo com o sistema de regras em questão. Se é um cenário inspirado medieval, você pode gerar desde um Bárbaro crescido nas montanhas geladas até uma ladra caolha, com voz grossa (lembrei dos Changeman de repente…), por exemplo.

Se for um cenário super-heróico, você pode criar um personagem que solte fogo pela boca, que tenha sido atingido por meteoros e passa a soltar raios de plasma; qualquer coisa que o mestre do jogo permitir.

Criado isso, e definido os atributos desse personagem, você irá para a parte mais divertida: o background.
Aqui é onde o escritor dentro de você aflora!

Você começa a pensar sobre a origem daquele personagem, seus aliados, seus inimigos, seu grande amor, treinamento, objetivo de vida.

Tudo o que um escritor faz ao longo da vida centenas de vezes com seus personagens.

Com os personagens prontos, o Mestre do jogo cria um motivo para que eles se juntem em uma missão. Esse é um dos conceitos criados por Dungeon & Dragons que se tornaram clichês. Naquele jogo, especificamente, tal encontro se dava sempre em uma taberna, sendo os aventureiros um grupo de mercenários, caçadores de recompensas.

Então um velho bizarro na taberna começava a falar sobre uma lenda, que continha um grande tesouro para quem fosse lá conferir a coisa. Ou então que o rei tal havia colocado uma recompensa por uma tarefa X.
E os aventureiros iam lá tentar ser felizes.

 
(típico grupo de aventureiros, pensando em como realizar a próxima missão impossível)

Quando aparecem inimigos nessas aventuras, o mestre solicita que os jogadores “testem sua sorte”. Isso significa rolar dados multifacelados e compará-los com os atributos pré-estabelecidos de seus personagens. Na maioria das regras para a sua ação ter sucesso é preciso conseguir um número menor do que o número do atributo em questão.

Por exemplo, digamos que você esteja jogando o sistema 3D&T e tenha Força 2. Então resolve que quer arrombar uma porta trancada. Você rola o dado e se tirar 1 ou 2, você consegue. Se tirar, 4,5 ou 6, você bate na porta e volta feito uma bola de pinball.

O bacana do RPG, contudo, é a evolução pela qual seu personagem passa.

A cada missão completada você ganha pontos de experiência, que tornam seu personagem mais forte e famoso dentro do cenário proposto. Com várias aventuras, que ganham o termo de campanha, você acompanha seu personagem que no início era um fazendeiro metido a macho se tornar um lorde de guerra! A sensação disso é indescritível.

É como realmente você acompanhar um épico, mas se sentindo dentro desse épico.

Outro grande aspecto da coisa toda é a interpretação.

Sem essa compreensão por parte do jogador, um personagem de RPG é só uma planilha esquisita de números. Ele é uma folha e nada mais. Seria como você resumir você mesmo ao que diz o seu cadastro no Orkut. Ok, ele pode dizer algo de você. Mas ao mesmo tempo, você provavelmente é muito mais do que aquilo (mesmo que nem sempre para melhor…).

A graça de se criar um personagem completamente diferente de você é entrar na mente dele e pensar como ele pensaria. Se o mestre lhe diz:

Você entra no salão e então enfim encontra o filho do assassino da sua mulher, a quem você jurou vingança. Curiosamente, é apenas uma criança. Ela está aterrorizada. O que você faz?

Se você for um padre jesuíta, você pode escolher perdoá-la. E perceber que o caminho da vingança não é o que lhe dará paz.

Se você for um bandeirante escravocrata, você pode escolher fazer vingança ainda assim.

Não importa se você concorda com aquelas atitudes. A ideia é tentar entrar na mente daquele personagem. E isso também gera uma sensação muito intensa após uma aventura.

No fim das contas, se colocar no lugar do outro ainda é a melhor maneira de repensarmos nossos próprios atos.

 
(a ideia é essa…)

RPG & Literatura

Como dito, o RPG em si tem muitos conceitos em comum com uma estrutura narrativa.

- O mestre precisa organizar diversas personagens de personalidades diferentes, dentro de uma mesma estrutura de ação.

- Ele precisa definir toda uma ambientação e regras daquele cenário proposto.

- Ele precisa pensar em Pontos de Virada na trama, em vilões, recompensas, artimanhas, armadilhas, emboscadas, personagens secundários.

- Os personagens evoluem; eles precisam de um arco dramático que os faça evoluir tanto de forma física quanto mental.

- É preciso aprender a pensar como um personagem, independente das suas opiniões e filosofias pessoais.

- É preciso ter ritmo para não cansar. Se o ritmo cai e os jogadores começam a se entediar com as aventuras do mestre, ele grita logo um: “ATAQUE SURPRESA DE GOBLINS!” que acorda rapidinho os sonolentos.
E com isso tudo apresentado, vem a questão: mas RPG afinal é literatura?

Resposta: não, mas é possível se fazer literatura oriunda do RPG.

Nos EUA são bem comuns sagas literárias inspiradas em cenários como Dragonlance, Forgotten Realms, Vampire e Shadowrun, por exemplo. Algumas delas se tornam best seller do New York Times e se tornam até clássicas dentre o público alvo.

Muitos autores de literatura fantástica de hoje tiveram seus primeiros contatos com o gênero exatamente com o jogo, antes de começarem a ler sobre o assunto. O escritor Leandro Reis, por exemplo, da série “Legado Goldshine” é um fã assumido e que não nega suas influências. Eu e Eduardo Spohr testamos alguns dos personagens que viriam a estrelar “Dragões de Éter” e “A Batalha do Apocalipse” em aventuras de RPG de mesa.

E quantos não começam a escrever inspirados em Tolkien, cujo cenário foi a grande inspiração para o próprio RPG em si?

Aqui no Brasil, o caso mais famoso, contudo, é o de Leonel Caldela, que deu vida aos romances inspirados no cenário de RPG Tormenta.

RPG & o Demônio

É triste ter de usar espaço aqui para comentar uma coisa idiota e nonsense dessas, mas fazer o quê?

A questão é assim: junte os elementos “cidade pequena + crime brutal + delegado sem saber o que fazer + ignorância + imprensa estilo Superpop”.

O resultado é o de sempre: informação sensacionalista e irresponsável.

Eu poderia explicar os casos que levaram à essas bizarrices, mas Marcelo Del Debbio já o fez de maneira muito competente no website da Daemon, no link que você pode acessar aqui.

Depois de ler o que está lá, você pode sentir vergonha alheia por alguns setores de imprensa.

 
(Culpar o RPG pela atitude de algum doente, é como culpar o futebol por coisas assim…)

RPG no Brasil

Por aqui, o grande desbravador foi o chamado Tagmar, que surgiu em 1991. Em época de material traduzido escasso, ele fez bastante sucesso e era comum em points nerds, como gibiterias, se encontrar mesas com dados coloridos e fichas do cenário espalhadas.

O Desafio dos Bandeirantes surgiu no ano seguinte e enfrentou barreiras de preconceitos intensas (assistam a uma palestra dos autores), o que já era de se esperar já que foi o primeiro a se utilizar do folclore brasileiro em sua ambientação.

Com o tempo, surgiram alguns que nasceram e morreram e outros que sobreviveram ao tempo.

Alguns que vêm à mente: Millenia, Trevas, Defensores de Tóquio, Monsters, Era do Caos, Invasão. Sem contar os sistemas que poderia ser adaptados a qualquer cenário, como: Opera RPG, Nexus e 3D&T (o mais famoso deles, que por ter sido vendido em bancas de jornal chegou a locais que não possuiam livrarias especializadas).

A revista Dragão Brasil também prestou um grande serviço ao tema, sendo por muito tempo a única sobre o assunto no país. Curiosamente, as primeiras edições se chamavam “Dragon Magazine”, eram imensas e em preto e branco.

Os responsáveis pelo conteúdo, o chamado Trio Tormenta, formado por Marcelo Cassaro, J.M. Trevisan e Rogério Saladino, juntaram o material ao longo de anos, dando origem ao já citado cenário de RPG “Tormenta”, e abriram espaço também para a divulgação do trabalho do companheiro de Sedentario Marcelo del Debbio, que antes de desvendar teorias de conspiração escrevia RPGs inspirados em temas sobrenaturais.

[atualizado: alguns leitores nos comentários já lembraram do sistema genérico GURPS. Ainda que com um tanto complexo esquema de regras, de fato ele ajudou a popularizar o RPG por aqui com seus diversos suplementos como GURPS Supers, GURPS Fantasy, GURPS  Horror, GURPS Conan, etc. Como estava citando os nacionais, não o havia comentado, assim como o sistema Storyteller, que também foi um marco e gerou os live actions também citados, que eram uma espécie de teatro improvisado, com os jogadores literalmente interpretando seus personagens].

De qualquer maneira, o RPG ainda será para sempre a maior escola de contadores de história já criada e irá influenciar milhares de pessoas a se interessar por fantasia e tudo que rodeia a imaginação.
No fundo é mesma essa a grande magia.

O poder de se jogar dados com o universo.


ps: e quem quiser, aproveite os comments de hoje e nos conte algo que adoramos saber: afinal, algum RPG de mesa ou eletrônico marcou a sua história ou gerou uma lembrança interessante ou engraçada, digna de nota?

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