10 fevereiro, 2011

"Algozes" - Leandro Reis

 
      
      Quando subo esta colina, onde descansa o túmulo que deveria ser meu, sempre tenho a mente invadida pelas lembranças do passado. 
       Uma época onde Crown orgulhava-se das riquezas e poder que ostentava. Atributos estes, conquistados com muito sacrifício pela minha linhagem. Sempre que visito este jazigo, meus pensamentos agitam-se e não consigo deixar de pensar em como aquele dia sangrento mudou minha vida.
       A manhã de outono em que conheci meu algoz ficaria selada também como o dia em que descobri do que era capaz.
       O vento podava as árvores naquele início de outono, estendendo um belo tapete de folhas marrons sobre a praça central. O olhar das crianças transmitia alegria enquanto corriam em volta do monumento em memória ao fundador destas terras. Nossas belas mulheres ainda sorriam e o povo se animava em vista do crescente comércio com as terras de Oberil.
       Lembro-me de estar apanhando ameixas para as crianças quando a primeira bola de fogo cruzou os céus. Vários olhares pasmos acompanharam aquele sinal de morte, que voou por nossas cabeças até chocar-se contra uma casa, explodindo em chamas para consumir tudo em sua volta.
       Mas foi ao procurar sua origem que meus joelhos tremeram. Ao fitar o céu azul e ver, com olhos de um guerreiro que desconhecia a guerra, mais uma dezena daquelas esferas flamejantes, arautas da destruição.
       Segurei as crianças e as arrastei para casa, deixando-as com seus pais. Desembainhei minha espada por reflexo, deixando-a preparada para o desconhecido. Saí pelas ruas, observando o caos. Os soldados ordenavam que eu procurasse abrigo e eu os ignorava, procurando por um inimigo ou por uma chance de ajudar na defesa da cidade. Eu andava em círculos, assim como nossas defesas, que não entendiam o que acontecia. 
       — Rodall! – veio a voz conhecida ao mesmo tempo em que a mão forte tocou meu ombro. – Me siga.
       Não ousei desobedecer. Jamais o fizera. Não com o Lorde de Guerra Callian, conselheiro de meu pai e meu tutor desde a infância. Seguimos pelas ruas da cidade em chamas, rumo ao castelo. Aquela chuva de fogo espalhara caos e morte, liberando o medo de cada súdito de Crown.
       Então portais abriram-se, círculos vermelhos emitindo luz em direção aos céus. E vieram os inimigos. Alguns de nossos soldados mais ousados atravessavam o círculo, sumindo na luz, para lutar no campo inimigo. Enquanto outros cercavam as passagens mágicas, para confrontar a horda que saía do desconhecido.
       Continuamos nossa corrida até chegar às muralhas do castelo. Os portões de madeira e aço mantinham-se firmes, mesmo sendo forçados por um aríete inimigo. Uma criança chorava ao longe e uma mulher chamava por seu marido. Gritos de desespero fundidos ao som do aço e fogo podiam ser ouvidos. Por todos os lados encontrava-se apenas o caos.
       — Galio! – chamou meu tutor, logo que nos aproximamos da torre leste de vigia.
       O grito chamou a atenção de alguns invasores. Minha espada mantinha-se firme, ainda virgem de qualquer sangue inimigo, mas treinada por anos de dedicação e vontade de proteger meu povo. Mais invasores vieram, alertados pelos primeiros.
       Teriam chego a nós e o combate aconteceria, mas uma voz conhecida entoou palavras antigas, preenchendo o ar com seu poder. O chão então tremeu e as rochas ganharam vida, empilhando e juntando-se até erguer do solo uma forma humanóide de pedra e terra. Gigantesco, o guardião elemental rugiu e socou o chão de modo intimidador, desafiando o inimigo a avançar. E eles aceitaram o desafio, somente para serem esmagados pelos poderosos punhos e pés do guardião.
       Só então Gálio, o mago de guerra, surgiu dos céus, montado em seu corcel das nuvens, um animal encantado capaz de cavalgar os ventos. Em sua mão direita, o cajado de Mali, herança dos arcanos que ocuparam sua posição nas eras passadas.
       — Meu pai, como está? – perguntei, sem pensar em ocultar o medo e a vontade de estar em segurança.
       — O rei está a salvo. – respondeu o arcano. – Eu o transportarei até ele.- Os soldados já estão reagindo, mande-me também, pois iremos juntar o conselho e preparar nossa retaliação. – bravejou o Lorde de Guerra.
       — Não comece o conselho sem mim, eu quero participar. – afirmou o mago, erguendo o cajado, fazendo-o brilhar como o sol.
       Meu corpo tornou-se leve, a visão escureceu e me senti em queda, mas meus pés tocaram o solo novamente, formigando levemente, e minha visão voltou.
       Meu pai abraçou-me antes que pudesse dizer qualquer coisa. Um abraço forte e rápido. Minha mãe veio em seguida, aos prantos, revirando minhas roupas e apalpando minha pele à procura de ferimentos, como se eu ainda fosse uma criança. Meu pai então urrou de dor, repentino e inesperado. Gritos e o som do aço sendo desembainhado invadiram o local sem aviso, desrespeitando as tapeçarias com imagens sagradas da deusa da Justiça, Rauny. Minha mãe soltou-me e, levando as mãos à boca, ajoelhou-se descrente, paralisada em meio ao desespero. Só então vi o que acontecia. O momento derradeiro, cujos detalhes em sons, cores e cheiros, não me abandonam jamais.
       Meu pai, estendido no chão, erguia a mão em sinal de misericórdia. A garganta vertia sangue, enquanto a espada de Callian, meu tutor, desferia mais um golpe sobre o corpo já condenado. Da dezena de soldados que nos protegiam, somente cinco atacaram seu líder, ainda assim, hesitantes. E cada um encontrou sua morte, rápida, em golpes certeiros ou lenta, em membros decepados. O Lorde de Guerra era o ícone para nossos guerreiros e sua traição era a ruína de nosso mundo.
       Lembro-me dos olhos castanhos de meu pai, abertos em expressão inconformada. De sua boca rasgada, que deixara de mover-se tentando nos dizer algo. E lembro-me de minha mãe, tão indefesa quanto um bebê, segurando sua mão contra o peito, na esperança de que o marido amado voltasse à vida. Lá fora, o povo chorava e clamava por misericórdia. Por isso, eu ataquei.
       Minha espada avançou antes de meu pensamento, colidindo-se contra a lâmina de meu tutor. E o aço inimigo reagiu, vindo contra meu peito. Movimentos conhecidos. Defesas esperadas. Éramos irmãos. Mas ele sempre seria melhor. Callian girou a espada tirando minha defesa e atacou visando meu pescoço. Joguei o corpo para trás, mas não o suficiente. O aço acertou próximo à minha orelha, rasgando minha bochecha e arrancando alguns dentes.
       E quando resisti à dor, deixando de chorar, sem importar-me com mais nada, eu soube quem eu era. E revidei, sem opção alguma, eu lutei como nunca.  Sentindo o aço vibrar a cada golpe rechaçado. Engolindo meu próprio sangue, sem tempo para respirar, eu desferi tantos golpes quantos pude. E ele recuou.
       Um passo. Dois. E no terceiro, desequilibrou-se, tropeçando em meu pai e tombando. E eu pulei sobre ele, um animal encurralado e furioso. Não me lembro da sensação de ter atravessado a espada em seu coração. Ou mesmo de ter percebido quando o combate no restante da cidade cessou. Sequer do toque de minha mãe, que disse ter tentado me tirar de cima do traidor. 
       Mas eu ainda vejo seus olhos abertos. Eu ainda sinto seu cheiro e lembro da espada vibrando com sua última batida de coração. Não há como esquecer daquele dia, quando a vítima tornou-se algoz. E o algoz, mesmo vítima, matou o filho inexperiente do rei que residia dentro de mim.
       Nós o enterramos como herói. E seu feito foi condenado ao esquecimento, pois nenhuma invasão nos arruinaria mais que esta amarga verdade. Eu jamais soube porque fomos traídos. Prefiro acreditar na mentira que contamos. Uma história na qual lutamos lado a lado, onde nosso Lorde de Guerra sacrificou-se para proteger a família real. Uma bela história contada pelos bardos, que inspira o povo e me anima a continuar.
       A cada aniversário eu rezo à Rauny pela sua alma. E agradeço, pois ele matou minha inocência e meu medo, criando o rei e herói que o reino precisava para enfrentar a difícil guerra que viria. Meu povo resistiu àquele ataque e aos muitos outros que viriam.
       Hoje, subo aqui pela última vez, meu amigo. Irei guiar nossa gente para as terras de Oberil, fugindo do exército de Rashidi. Não me orgulho disto, mas eles tornaram-se tão numerosos que não podem mais usar portais e agora marcham para terminar o que começaram vinte anos atrás. Eu sou o último dos Naskell e minha linhagem precisa continuar.
       Espero um dia poder vingá-lo, meu tutor, meu irmão, meu algoz.
Leandro Reis, também conhecido como Radrak, possui 29 anos, mora em São José dos Campos, São Paulo. É casado e se diz “nerd de carteirinha”. Fã de RPG, animes, quadrinhos, cinema, Final Fantasy, Dungeons & Dragons e Video-game. O surpreendente é que o gosto pela escrita surgiu em sua vida desprentensiosamente como um "hooby" e, segundo ele, confidenciado em off, só começou a "ler de verdade" aos 23 anos! Leandro é mentor intelectual do mundo fantástico de Grinmelken, universo desenvolvido por ele, com a ajuda de amigos, que foi amadurecendo ao longo de 11 anos e culminou com o lançamento de seu livro "Os filhos de galagah".
Crônicas de Grinmelken  www.grinmelken.com.br
Leandro  Reis

Um comentário:

  1. Muito legal o conto, ja conhecia um pouquinho de LEandro Reis mas ainda não tinha lido nada dele!
    Viu te indiquei para dois memes la no blog... passa lá....
    http://ofantasticomundodaarte.blogspot.com

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