17 fevereiro, 2011

A Fenda

Escrito  por  K z a r 
     A cabeça de Rujanm parecia girar enquanto tentava se levantar. Retirou o elmo, amassado profundamente onde fora atingido por um golpe de bastão. Um simples bastão. Jogou a inútil peça da armadura no chão de pedras.

      Havia se preparado praticamente a vida toda para aquela busca. Desde que ouvira falar da Lenda da Armadura Negra, cada um de seus dias na Ordem Templária de Samiel tinha um único objetivo: vestir a indestrutível indumentária do Cavaleiro D’Ardon.

      A lenda era muito clara. Contava de um Cavaleiro Templário que, lutando e vencendo o dragão negro Tabuloon, conquistou o direito de vestir uma armadura forjada pelo Ferreiro Nai No Kami, o grande Mestre da Forja. Além disso, o Cavaleiro passou a ter o domínio sobre o dragão vencido.

      Grandes foram os feitos de D’Ardon sob o uso da Armadura Negra e, antes de sua morte, a escondeu na floresta ao sopé do Templo do Sol. Segundo a lenda, Tabuloon passou a ser o guardião da armadura. Aquele que o derrotasse em batalha, conquistaria o direito de vestir a indumentária.

      Mas algo estava errado nesta lenda. Em todos os pergaminhos que estudou sobre seu objeto de desejo, não havia qualquer menção à estranha figura à sua frente. Um velho homem de branco impedia a passagem em uma fenda rochosa, onde Rujanm tinha plena certeza de que estava escondida a Armadura Negra.

      Bastava atravessar a Fenda, lutar e vencer Tabuloon. Feito isto, o conjunto de guerra do Cavaleiro D’Ardon seria seu.

      Ofegante, Rujanm levantou os olhos e observou o homem de branco. Uma aura sobrenatural parecia circundá-lo por inteiro, como se tivesse uma estrela d’alva escondida por baixo das longas barbas claras. O cabelo, igualmente longo, caia em uma trança única nas costas do guardião da Fenda.

      Enquanto Rujanm trajava uma armadura Templária completa, incluindo a capa branca com a cruz vermelha de quatro pontas iguais, o velho vestia unicamente uma alva túnica.

      Vá embora – disse o homem de branco. – Não há nada para você além da Fenda.

      Não vim de tão longe para voltar sem luta – respondeu o Templário.

      Se você não percebeu, nós já lutamos – sorriu com sarcasmo. – E você perdeu.

      Era difícil reconhecer a derrota, mas o fato é que, a princípio, Rujanm tentou argumentar com o velho que lhe impedia a passagem. Porém, depois de alguns insultos da insignificante criatura de branco, decidiu dar-lhe o merecido corretivo. Não utilizou arma, pois acreditou que daria cabo do inconveniente com as mãos limpas. Enganou-se. Foi recepcionado por saraivadas de golpes com o bastão que sustentava o velho. Numa agilidade incompatível com sua idade, o homem de branco surrou o Cavaleiro que tentava forçar a passagem.

      O último golpe atingiu a cabeça de Rujanm, jogando-o para fora da estreita Fenda.

      Fui complacente com você, velho – disse puxando a espada. – Não tenho tempo para brincadeiras. Saia do meu caminho ou vou trespassá-lo agora.

      Tenho certeza de que sua língua é mais hábil que sua esgrima – sorriu o velho. – Se você preferir, lutarei sem o bastão e poderei dar umas palmadas nesse seu traseiro de criança insolente.

      O insulto impulsionou Rujanm para dentro da Fenda. Antes que ele desferisse o golpe frontal, recebeu a ponta do bastão no queixo. Sua cabeça inclinou-se para trás e foi golpeada mais duas vezes.

      O Templário tentou contra-atacar, mas a estreita parede rochosa não permitia o giro completo da espada. A lâmina faiscava nas pedras enquanto o guardião da Fenda surrava-lhe novamente.

      Fixando o bastão nas paredes, o homem de branco apoiou-se nele e encheu o peito de Rujanm com um chute que o expulsou novamente da passagem.

      Enquanto ofegava, o Templário tentou retomar  a postura. Cambaleou, mas permaneceu em pé, contemplando o sorridente homem que não havia cedido um único centímetro para dentro do caminho.

      O orgulho do Templário estava mais ferido que sua carne, latejante em dor em várias partes do corpo.

      Eu não quero te machucar de verdade – disse Rujanm. Sua condição não dava qualquer credibilidade às palavras.

      A questão é: você consegue me machucar?

      Um Templário treinado nas Artes de Samiel poderia machucar qualquer criatura viva. Vários ritos de defesa e ataque eram ensinados e Rujanm era um mestre na Arte do Fogo.

       Sim, eu consigo – disse o Cavaleiro enquanto chamas subiam pelo fio de sua espada. – Deixe-me passar, agora – o fogo inflamou até punho e tomou conta do braço que segurava  o ferrão metálico.

      Prepare-se para ser machucado, Cavaleiro Templário. – desafiou o guardião.

      Rujanm cruzou a espada por três vezes no ar e projéteis na forma de lâminas incandescentes foram lançadas contra o oponente.

      O trio de lâminas de fogo explodiu na palma da mão direita do homem de branco. O Cavaleiro Templário o fitou enquanto as alvas madeixas acentavam após o impacto dos projéteis.

      Como que impulsionado por uma forte rajada de vento, o Guardião voou na direção de Rujanm. Raios crepitavam ao redor de seu corpo e faiscavam em toda a extensão do bastão que empunhava fortemente, dando-lhe a aparência de um deus do trovão.

      Em campo aberto, Rujanm conjurou uma barreira vermelha, mas ela foi quebrada com o primeiro golpe do velho. A cada golpe que o atingia, seu corpo sofria espasmos de violenta dor, como se uma onda de choque intenso contraísse seus músculos.

      Finalmente, o Templário se viu deitado com o bastão apoiado no queixo. O homem de branco lhe pisava na altura do peito.

      Vá embora e diga que não encontrou o que procurava. Ou diga que um velho o derrotou. Não conte qualquer detalhe da batalha.

      Rujanm não disse palavra e sentiu o bastão ser enfiado mais forte na garganta. A voz do homem tornou-se ameaçadora:

      Faça um juramento Templário, ou morra agora.

      Com meu sangue – raspou a mão esquerda na lâmina da espada que estava deitada ao seu lado – e pelo sangue de Samiel, eu juro. Farei o que você ordena.

      Selado o juramento pelo rito, Rujanm levantou com dificuldade.

      Quem é você? – perguntou.

      Sou o homem que te venceu em batalha. – Sorriu-lhe o velho.

      Sabendo que não teria melhor resposta que aquela, o Cavaleiro Templário desceu pela floresta e voltou para seu Templo, na distante cidade de Nova Tahyma.

      Depois de contemplar a partida do guerreiro, o homem de branco atravessou a fenda. Uma baforada quente soprou-lhe os cabelos e ele acariciou o focinho de um grande dragão negro.

      Não será hoje, meu amigo Tabuloon, que você encontrará seu novo Mestre. Apenas aquele que derrotar o único que te venceu em batalha conseguirá suportar o que virá depois da Fenda.

      Esta era a estranha maneira de D’Ardon, o Lendário Templário, proteger a vida dos incautos Cavaleiros da Ordem de Samiel que desejavam sua Armadura Negra, a qual jazia mais adiante, descansada num altar de pedra, fitando inconsciente com sua carranca de dragão a alva luz que provinha daquele homem de branco.

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