01 maio, 2011

Livros póstumos

Sérgio Telles - O Estado de S.Paulo
 
David Foster Wallace, autor de ensaios (gênero pouco praticado entre nós), reportagens, contos e romances unanimemente elogiados pela crítica norte-americana, matou-se em sua residência em 12 de setembro de 2008, aos 46 anos. Seu prestígio literário só fez crescer desde então, sendo enfatizados sua habilidade em recriar a linguagem oral e as idiossincrasias linguísticas de diversos grupos culturais e profissionais, a acuidade com que descreve os relacionamentos humanos e seus conflitos, o estilo lúcido, desencantado e irônico. David Foster Wallace é pouco conhecido no Brasil, onde apenas um de seus livros foi traduzido - o Breves Entrevistas com Homens Hediondos, publicado pela Companhia das Letras em 2005.

Wallace deixou, impresso e em arquivos de computador, o inacabado livro no qual trabalhava havia dez anos, desde o lançamento em 1997 de Infinite Jest, o romance com o qual, na opinião de muitos, alterou o panorama literário norte-americano. Por dois anos, o extenso material de mais de mil páginas foi submetido a um cuidadoso trabalho de editoria que o reduziu pela metade e, intitulado como The Pale King, foi lançado no último dia 15 nos Estados Unidos, atraindo a atenção dos meios literários.

O interesse em torno de The Pale King nos faz pensar sobre as questões levantadas pela publicação póstuma de originais e rascunhos deixados por seus autores.

Tal publicação só ocorre, é claro, com autores de reconhecida importância e obedece a diversos interesses. Entre eles, o financeiro não é dos de menor peso - editores e herdeiros do autor não querem desperdiçar a oportunidade de ampliar suas rendas. Mas há também os interesses literários, pois os estudiosos da obra se beneficiam com o rascunho inconcluso que lhes permite observar melhor os processos criativos do autor, seguindo a maneira como o mesmo dá forma ao material, através de cortes, supressões, acréscimos, etc.

A legitimidade desses interesses beira com questões éticas. Um autor pode não ter publicado em vida seus textos por muitos motivos, como a impossibilidade de encontrar editores, o considerar que a obra realizada ficou aquém do desejado ou ainda por não ter conseguido desenvolver as ideias das quais deixou apenas meros esboços que nada significam sem o trabalho que as transformariam numa produção artística. Tirando-se o primeiro caso, deve-se, nos demais, publicar aquilo que o próprio autor deixou inédito? Sem falar que muitas vezes o material deixado pelo escritor está tão cru e incipiente que aquilo que vem a lume dificilmente pode ser-lhe atribuído, tantas foram as intervenções necessárias, realizadas pelo editor, para deixar o texto apresentável ao grande público.

Um exemplo recente dessa situação pode ser vista com o último livro de Vladimir Nabokov - The Original of Laura (O Original de Laura, Alfaguara Brasil). Neste caso havia uma complicação a mais. O autor, morto em 1977, deixara apenas uma versão inicial disposta em 138 fichas de arquivo (equivalentes a 30 páginas manuscritas) sem nenhuma ordem estabelecida - como costumava fazer com todos seus livros - e explicitara em seu testamento que o mesmo deveria ser destruído. A esposa Vera e o filho Dmitri não conseguiram cumprir suas ordens e, depois de um demorado debate entre estudiosos e editores, que se estendeu por mais de 30 anos, o livro foi publicado em novembro de 2009.

Como é sabido, Nabokov atingiu a fama mundial em 1955 com seu livro Lolita, no qual aborda a paixão de um homem de meia-idade por uma pré-adolescente. O romance gerou um filme também famoso, desencadeando uma incontrolável epidemia de Lolitas pelo mundo afora. Transcendendo esse sucesso popular, Nabokov é considerado o maior romancista de língua inglesa do século passado, apesar de ter o russo como língua materna.

O caso de Nabokov é interessante, pois se até o momento apontávamos para a suposta cupidez dos herdeiros e editores no trato com o material inédito deixado pelo autor, fica agora evidente a ambiguidade do próprio autor frente a seu texto inacabado. Afinal, se Nabokov teve tempo e forças para ordenar a destruição do livro, por que ele mesmo não o fez, poupando à mulher e ao filho tamanha responsabilidade? Sua atitude parece demonstrar uma forte ambivalência, pois enquanto, por um lado, ordenava a eliminação da obra, por outro espicaçava com isso a curiosidade dos estudiosos, assegurando assim sua sobrevivência.
Algo semelhante poderia ser dito sobre o The Pale King, de David Foster Wallace, que teria disposto os originais de forma a serem facilmente encontrados após sua morte, delegando dessa forma a outrem a responsabilidade de sua publicação. Mas em casos como o dele, a ambivalência - ou seja, a existência simultânea de sentimentos intensos e contraditórios, como amor e ódio frente a praticamente tudo a que estejam ligados - é muito mais ampla e radical, o que termina por debilitar o próprio apego à vida.

De seu excelente livro de contos Breves Entrevistas com Homens Hediondos, duas narrativas adquiriram especial interesse, pois nelas está prefigurado o desfecho que daria à sua vida. São eles A Pessoa Deprimida e Suicídio como Um Presente.

No primeiro, acompanhamos as atribulações da "pessoa deprimida", empenhada em seguir ao pé da letra as orientações da terapeuta, cujas condutas são fortemente desacreditadas e ridicularizadas pelo autor. No segundo, Wallace mostra com grande acuidade psíquica - à qual um psicanalista nada teria a acrescentar - a mortífera relação entre uma mãe e seu filho que leva a um beco sem saída.

Ambos ilustram bem o dito freudiano de que os grandes escritores têm um conhecimento intuitivo direto do inconsciente, coisa que os analistas só adquirem através de um longo treinamento. 
 
 
Fonte: Estadão

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