17 setembro, 2010

SITALA – Parte 2


Sitala é um conto seriado apocalíptico de Fernando “Tucano” Russell, com ilustrações de Brunner Franklin

Meu primeiro contato com a Europa foi meio traumático. Para começar, o navio que deveria me levar para a “Terra da Rainha” teve alguns problemas. Para variar, eu estava alheio ao início dos acontecimentos, mas de repente, eu vi que o cargueiro que nos levava para a Inglaterra tinha virado uma praça de guerra.

De um lado estavam os marinheiros, quase todos indianos, e o capitão, que era um velho filipino. Do outro, estavam uns cowboys, vindos de Nevada, que estavam muito loucos e queriam assumir o controle do navio.
Lógico que aquilo só podia dar em m%$#@. No final, depois de dois ou três dias de tiroteios e emboscadas pelo navio, os cowboys conseguiram matar a maioria dos indianos e tomaram o cargueiro. Só que tem uma coisa, o negócio de cowboy é cavalo, laço, touro. Navio é para marinheiro, p*!!@! Esses caipiras idiotas devem ter achado que era só girar o timão, como nos desenhos do Popeye.

Eu tentei me manter o mais afastado de tudo e de todos. Passar despercebido. Era desse jeito que, desde a pandemia, eu estava me virando sozinho e estava indo muito bem, por sinal. Por isso, me entoquei em uma cabine e de lá só saí quando o navio encalhou numa ilhota rochosa.

Como se já não bastassem os problemas que todos nós tínhamos que enfrentar, ainda éramos obrigados a lidar com esse tipo de babacas. Eu costumava pensar: se essa doença foi um castigo de Deus, por que não levou esses imbecis para o inferno? Será que os que morreram de varíola foram os escolhidos para se salvarem da selvageria que se tornou o mundo?

Bem, o fato é que eu consegui pegar um dos barcos salva-vidas e saí remando para longe do navio, que não chegou a afundar, mas ficou com o casco encravado nas pedras. Eu olhei para trás e vi o cargueiro. Era uma visão bem sinistra. Parecia que a qualquer momento aquela p*!!@ de navio iria a pique.

Eu demorei a avistar a costa. Depois de uns quatro dias eu já estava desidratado e minha vista estava toda embaçada. Quando vi uma praia no horizonte, achei que era uma miragem ou coisa assim. Estava morto de sede e com o corpo fraco, mas as ondas me levaram para a areia. Eu desci, me ajoelhei e chorei.

Chorei como nunca tinha chorado antes na minha vida, porque era um choro de alívio e de esperança. Eu tinha chegado à Inglaterra, onde minha vida iria mudar. Eu voltaria a ter uma razão para continuar minha existência, longe daquele purgatório em que se transformou a minha pátria. Mas a minha alegria durou pouco. Pouquíssimo, eu diria.

Eu juro que não ouvi nada. Nem ao menos um latido. Quando dei por mim, eu já estava sendo atacado por várias mandíbulas ferozes. O pior é que eu não tinha forças para reagir. Fechei os olhos e desencanei. F*%@-se! Já não sentia mais as mordidas. Nem o bafo quente dos cães, nem a saliva nojenta que se misturava ao meu sangue… Eu estava cansado demais para sentir dor. Tudo o que eu pensava era: que pena! Demorei tanto tempo para chegar aqui e agora vou morrer na praia, como um filhote de tartaruga que não consegue chegar ao mar.

- Fiuuuuiii – eu ouvi um assobio – Pancho, Pepe, Cheech, vengan hasta aquí. Dejen ese pelado. Gritou alguém em castelhano. Na época eu não entendi nada, mas as palavras ficaram na minha cabeça.
As mordidas cessaram. A dor voltou, mas as bocarras insaciáveis e frenéticas pararam de me atacar. Quando abri os olhos, vi um cara meio cabeludo apontando duas pistolas para minha cara. Com um sotaque, que com certeza não era britânico, perguntou em inglês quem eu era.


Eu não consegui nem responder. Ele abaixou as armas para repreender os cães que latiam sem parar. “Ustedes comem cualquier cosa pola calle y después se quedan malos. Yo no voy limpiar vómito, y tan poco saliré buscando medicamentos.” – disse o cara de volta ao castelhano.

Eu pisquei os olhos e quando os abri novamente, ele estava com as armas apontadas novamente para minha cabeça. Estava ofegando como se tivesse corrido. Parecia um louco (e realmente era). Passou as costas da mão na testa para tirar os cabelos da frente dos olhos.

- Muchacho, usted tiene cinco segundos para decir quiem éres. – disse ele.

Naquela época eu não falava nada de castelhano, mas percebi que aquilo não era inglês. Tentei me explicar e ele voltou a falar a minha língua.

Eu juntei minhas forças para falar, mas apenas sussurrei. Ele se aproximou para ouvir melhor e eu tentei explicar a minha história. Contei que era de Nova York e que estava tentando levar uma nova vida na Inglaterra, mas que o navio havia naufragado.

Quando falei a palavra navio, ele arregalou o olho e me perguntou se o navio havia afundado. Eu respondi que não sabia, mas que achava que sim. Falei que havíamos batido em uma formação rochosa em alto-mar.
Ele continuou me interrogando e seus olhos brilharam quando eu contei sobre os marinheiros indianos. Marinheiros indianos? Ele repetiu minhas palavras, me argüindo. Eu fiz que sim com a cabeça e ele berrou:

– Charaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaas! Charaaaaaaaaaaaas!!!!

Os três cães que o acompanhavam começaram a uivar como se fizessem parte de um número ensaiado de circo. Auuuuuuuuuuuu!

- E haviam brasileiros na ‘nave’? – perguntou ele, falando um inglês quase incompreensível.

- Não. – eu respondi.

– Argentinos? – continuou ele.

- Não que eu me lembre. Só americanos, acho. E indianos, ou paquistaneses. Quem sabe ao certo?
Ele cerrou as sobrancelhas, baixou a cabeça e resmungou:

– Mierda! Nada de chuteiras, entonces. 

Eu olhei para os cães, que pareciam entender todo o nosso diálogo e acompanhavam silenciosamente cada palavra.

- Quantos dias de viagem? Argüiu ele, voltando o olhar para mim.

Eu não sabia direito o tempo, mas chutei uma semana. Então ele me botou dentro do barco, mandou os cães subirem a bordo e empurrou o barco de volta para o mar. Eu não entendi nada, mas ele me deu água para beber e uma barra de cereais que já estava com a data de validade vencida há algum tempo. Eu preferi não comer. Só bebi bastante água.

- Mi nombre és Javier. – disse ele voltando ao espanhol. Depois repetiu a frase em inglês e eu também disse meu nome: Ezekiel, como o da Bíblia.

Ele repetiu o nome do santo livro: a Bíblia. – respirou fundo e começou a remar. – Me gusta más Charas. – sussurrou ele.

Conforme ia remando, Javier me perguntava sobre a América e sobre a viagem. Com esforço fui falando tudo o que ele questionava. Ao que fui contando sobre o local onde o navio havia batido, ele começou a dar risadas. Disse-me que eu não sabia navegar e que tinha perdido meu tempo remando em círculos.

De fato, no cair da noite nós avistamos as luzes do navio. Eu fiquei impressionado com a disposição daquele cara remando. Além da capacidade de se nortear sem um GPS ou uma bússola sequer. Mal sabia eu que toda motivação dele estava dentro do navio. E, pelo que ia buscar lá, Javier remaria uma semana sem parar.
Chegamos perto do casco do cargueiro e pudemos ver que o navio ainda não tinha ido para o fundo. Estava lá, encalhado nas pedras.

Ao invés de tentar subir a bordo, Javier deitou-se e dormiu, me deixando ainda mais confuso. Tanta pressa para chegar e, quando chegamos, ele parou e dormiu. Como meu corpo e minha mente não se agüentavam, eu adormeci também.

Acordei no outro dia, com um dos cães me lambendo. O sol ainda estava raiando. Percebi que Javier tinha tirado o casaco que usava e tinha me coberto. Estava frio, mas ele estava com uma camiseta branca com as mangas cortadas.

- Hey, chico! Usted tiene una arma?- perguntou ele.
Eu disse que tinha uma espingarda calibre doze escondida no navio, mas que na pressa de fugir, deixei-a para trás. A careta que ele fez não precisava de palavras, mas ele quis ser mais enfático:

– Nunca se separe de sua arma. Nunca tenha pressa. E o mais importante: alimente bem o seu cachorro. Eles mantêm os gatos afastados!

Eu baixei meus olhos e aceitei o conselho, embora soubesse que minha maior arma era minha fé. E que se estava vivo até agora, era por obra do Divino Espírito Santo.

- Espere aqui com os cães. – disse ele, subindo em uma escada de corda que levava ao convés.

Eu esperei no barco salva-vidas. Eu e os três cachorros que me atacaram na praia. Cheech era o mais inquieto. Um jack russell terrier de pêlo liso, que não parava de andar de um lado para o outro, dentro do barco. Os outros dois eram mais calmos. Pancho, um rottweiler imenso e Pepe, um dogo canário com bastante idade e uma puta cara de mau.

Olhando bem para eles eu imaginei que, na praia, não me atacaram para matar, pois isso seria muito fácil para eles, principalmente para Pancho e Pepe.

Lá em cima, Javier estava quase dentro do convés, quando disparou o primeiro tiro. Os cowboys ainda estavam a bordo e ele teve que abrir caminho à bala. Os cães ouviram os tiros e levantaram as orelhas, atentos aos movimentos.


Não demorou muito e o espanhol estava de volta. Ele desceu habilmente a escada de corda e ao retornar estava com uma mochila gigante nas costas. Quando chegou ao barco, ele abriu a mochila e me mostrou o que fora buscar. Três mudas de uma planta, um saco com umas bolinhas escuras e uma espingarda calibre doze, cujo cano ficava para fora da mochila.

- É a sua arma? – perguntou Javier.

Fiz que não com a cabeça. Eu tinha uma Winchester e ele tinha trazido uma Bettinsole. Mas, nada mal! Nada contra! Uma espingarda européia para começar uma nova vida na Inglaterra, pensei, pegando a arma na mão.

Javier também me deu uma pequena estatueta de uma deusa hindu. Era uma mulher em um vestido vermelho, sentada em um burrico. Ele me disse que aquela era Sitala, a deusa da varíola. Disse-me para abandonar minhas crenças e pensar em deuses novos. É claro que não o levei a sério, mas guardei o presente.


Javier voltou a remar.

- Só mais uma coisa, cara. Aqui não é a Inglaterra, não – ele avisou com aquele inglês horrível. - Aqui é a ilha da Irlanda, hermano. Eu moro em Youghal, a praia onde você se encontrou com meus cães. É perto de Cork. Você pode ficar comigo por algum tempo, até que esteja em condições de viajar. Depois disso, você me paga a estadia e pode ir embora para a Inglaterra. Mas já te aviso, el viaje és un carajo!

Eu fiquei com a minha tradicional cara de palerma e Javier seguiu remando e cantando em sua língua natal:

Me gustan los aviones, me gustas tu.
Me gusta viajar, me gustas tu.
Me gusta la mañana, me gustas tu.
Me gusta el viento, me gustas tu.
Me gusta soñar, me gustas tu.
Me gusta la mar, me gustas tu.


Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin  
Fonte: Jovem Nerd

Nenhum comentário:

Postar um comentário