20 setembro, 2010

SITALA – Parte 3

Sitala é um conto seriado apocalíptico de Fernando “Tucano” Russell, com ilustrações de Brunner Franklin

Não demorou muito para chegarmos à costa, mas os cães já estavam impacientes, saltando de um lado para outro dentro do barco. Eu teria uma enorme simpatia por esses cães, se nosso começo não tivesse sido tão desastroso. Apesar de nunca mais terem me atacado, eu jamais perdi o medo completamente.

Nós desembarcamos em um local diferente daquele em que eu havia chegado. Javier se guiou pelo farol da cidade e aportamos em um pequeno ancoradouro rochoso. Os cães foram os primeiros a saírem do barco. Eu e Javier saltamos em seguida.

Enquanto Javier amarrava o barco no cais, me disse que aquele local era mais seguro para eles aportarem e que ele tinha um grande amigo que morava no farol. Não demorou muito para eu descobrir grau de amizade entre os dois.

- Espanhol desgraçado. Ladrão de chuteiras. – Gritou um homenzarrão ruivo, com uma espingarda nas mãos e sotaque carregado.

- Não atire, Sean. – Respondeu Javier se abaixando e se protegendo próximo a uma pedra.

O pedido de Javier não surtiu efeito e o ruivo disparou um tiro, que ricocheteou em um rochedo, indo se perder no mar.

- Esse é o seu amigo? Perguntei, ainda fraco pela viagem.

- Calma, ele está bravo porque eu peguei as chuteiras dele emprestadas. Ele gosta de Rugby! 

Um tiroteio por causa de um par de chuteiras! Eu não estava acreditando que tinha atravessado o oceano para me livrar da selvageria de Nova York e tinha achado gente mais louca na Europa.

- Fica com esse barco e eu te arrumo chuteiras novas. Achei a casa de uns australianos em Cork. Prometo que semana que vem eu trago um par novo para você – gritou o espanhol.

O ruivo disparou mais um tiro e berrou:

- Espanhol mentiroso. Acabou com as minhas chuteiras. Maldito!

- Eu tenho Charaaaaas – gritou Javier, levantamos as mãos e mostrando o saco cheio de plantas que ele tinha buscado no navio. – E pode ficar com o barco. Trouxe para você, Sean. É seu!

Os cães começaram a uivar e Javier os repreendeu, mandando-os calarem as bocas. Os cães obedeceram ao dono e se deitaram no chão como se pedissem desculpas.

- Charas? – Perguntou o ruivo. – Por que não disse logo? – Continuou, abaixando a espingarda e abrindo um largo sorriso.

Javier levantou a cabeça vagarosamente, olhando para o farol. – Posso ir até aí?  – Perguntou ele desconfiado. O homem, do alto do farol, fez um gesto com a mão, nos mandando entrar.

O ruivo era Sean Cotter, um velho marujo irlandês que vivia no farol. Sean morava ali com seu filho Will, mas havia três semanas que estava sozinho. Will Cotter havia seguido para Dublin com mais quatro aliados para comprar explosivos para uma guerra que, fatalmente, eles teriam que travar na cidade.

Aquele farol era quase uma fortaleza. Possuía um muro alto que o circundava desde o mar, até a avenida principal. Cara, esse tipo de paisagem só reforçava a minha teoria de feudalismo pós-moderno. Sean era o senhor feudal da zona costeira de Youghal e o farol era sua torre medieval.

Eu, Javier e os cães subimos por um caminho que circundava o muro, até chegarmos ao portão. Lá, estavam esperando Sean e seus cães. Eram oito setters irlandeses, ruivos como o dono, que fizeram festa para os visitantes.

- Trouxe charas, seu maluco? – Perguntou Sean. – Pena que Will já se foi. Ele poderia trocar alguns charas por muito explosivo – completou.

- Sim, é uma pena. Mas vamos fazer negócios em Cork. Os japas vão ter que ir embora daqui de uma vez – disse o espanhol.

Eles tomaram cerveja irlandesa e eu fiquei só no leite. Não que eu não gostasse de cerveja, mas na situação em que eu estava, achei melhor me alimentar antes de começar a beber.
Depois de um tempo na Irlanda, nós três voltamos a nos encontrar algumas vezes para tomar Guinness e devo confessar: depois de Guinness, a Budweiser nunca mais teve a mesma graça. Assim como o football, que tinha perdido o encanto depois que descobri o rugby.

Infelizmente eu só descobri o prazer de beber cerveja quando já era mais velho, depois que meus pais morreram. Enquanto eles eram vivos eu era ainda muito jovem e doutrinado segundo a lei de que o álcool é um veneno e contra os ensinamentos do Criador. Mas depois, lendo a Bíblia, entrei em parafuso: não há uma passagem onde Cristo não tome uma taça de vinho. Bem, o álcool é realmente um veneno, mas eu tomo minha cerveja como Jesus tomava seu vinho.

Muitas coisas mudaram na minha vida quando resolvi interpretar a Bíblia ao meu modo, sem levar tudo ao pé da letra, como faziam meus pais. Apesar de tudo, minha fé continuava intacta.

Depois que saímos do farol, eu e Javier caminhamos um pouco menos de uma milha pela a avenida costeira, até chegarmos a um prédio antigo que possuía uma garagem grande e cheia de carros.

- Esses carros são seus? – Perguntei.

- São de Sean. Essa parte da cidade é toda dele e do filho – me respondeu o espanhol, fazendo ligação direta em um jeep aberto. – Vamos pegar emprestado para chegarmos à minha casa. É do outro lado da cidade. A pé cansa!

Youghal devia ter uns seis ou sete mil habitantes antes da varíola. Quando eu cheguei lá eram 200 no máximo. Javier dirigia muito bem, mas corria feito um louco. Por várias vezes quase caímos nos rochedos, mas ele dizia que era preciso dirigir rápido para escapar dos atiradores nas janelas. Naquele dia eu não vi ninguém, mas depois iria saber que ele estava certo.

Porra, o espanhol era completamente louco. Muitas vezes eu não entendia nada do que ele falava. Não apenas por causa do péssimo inglês e pelos passeios lingüísticos, ora no castelhano, ora em um dialeto que eu nunca soube o que era. Às vezes eu não o entendia simplesmente porque as coisas que ele dizia não tinham nexo.

A arquitetura era o que mais me causava estranheza nos primeiros dias. Nada de arranha-céus. Só prédios no estilo antigo. Mas algumas coisas eram a mesma merda. Os carros nas ruas estavam abandonados e depredados, a maioria sem os motores, que eram usados para gerar energia nas casas. As pessoas não ficavam nas ruas também e o silêncio quase absoluto chegava a ser irritante.

A casa de Javier era em cima de um monte. Uma bela casa que ele tinha tomado para ele. Devia ser uma mansão em outros tempos, mas se parecia mais com um quartel general, cheio de bugigangas e equipamentos empilhados e armazenados.

Durante quatro dias eu me recuperei da viagem. Foram quatro dias de chuva ininterrupta. O tradicional clima irlandês. Depois desse tempo, quando a chuva diminuiu, Javier disse que estava na hora de eu pagar minha estadia. Ele tinha uma lista telefônica guardada dentro de um cofre. Era o maior tesouro dele. Ele a usava para localizar “artigos de necessidade”. A lista em papel era muito rara, já que a maioria dos catálogos telefônicos ficava on-line antes do colapso da rede.

Fomos até Cork de moto. Javier tinha uma Ducati vermelha de mil e duzentas cilindradas. A moto era a realização de um sonho de infância, que a pandemia lhe havia proporcionado. Na cabeça dele, esse era um ponto bom da varíola: os bens foram socializados. Um milionário morria e seus bens eram divididos pelos sobreviventes.

Com esse processo de “socialização”, Javier tinha conseguido realizar quase todos seus sonhos. Ele tinha uma Maserati Qattroporte automática, uma casa com piscina e a Ducati vermelha. O único sonho que estava incompleto era o de uma mulher bonita para dividir a cama:

- As irlandesas e as inglesas são horrorosas. De vez em quando uma sueca ou uma holandesa aparece em Cork. Mas eu já nem me lembro de quando eu vi uma mulher sem marcas na cara. Malditas pústulas – lamentava-se ele.

Eu não era tão exigente quanto ele nesse quesito. Mas também, nunca fui um ícone de beleza e a varíola foi cruel com meu rosto. Javier me lembrava o primeiro cara que eu matei. Não tinha marcas no rosto. Eu me perguntava se ele não havia desenvolvido a doença, ou se o sistema imunológico dele tinha sido mais eficiente. Nunca falamos sobre isso.


Cork foi meu batismo de fogo na Europa. Javier dirigia e eu ia atrás, com duas pistolas Glock 17 apontadas para frente e uma mochila cheia de outras armas nas costas. Ele tinha uma lista de endereços e eu daria cobertura. Fomos a todos, um a um. Ele tinha separado alguns nomes latinos e outros tantos que, sabe-se lá como, ele deduziu que eram de australianos ou neo-zelandeses.

Acho que o cara era uma espécie de gênio. Era difícil entender como a mente dele funcionava, mas no final, as coisas geralmente davam certo. Achamos o que ele queria em Cork: chuteiras.

Estávamos bem armados e foi necessário o uso do nosso poder de fogo para invadir alguns edifícios. Eu só estava perplexo com o grau de insanidade daquilo tudo. Estávamos matando gente para roubar chuteiras.

No último endereço, um prédio de três andares na Shandon, nos deparamos com uma mulher de cabelo castanho que nos recebeu com uma rajada de uma submetralhadora alemã. Ela atira como um homem!- comentamos com um tom de escárnio.

- Venham aqui seus filhos da p&*%. Comam isso! – Gritava ela enquanto atirava.

Javier ficou olhando para aquela mulher com certa admiração e hesitou um pouco antes de revidar. Ele se lembrou de um filme antigo. Domino, era o nome.
Ficamos atrás de uma pilastra esperando uma chance.

- Quer se render, chica? - Gritou ele.

A mulher respondeu cuspindo mais uma rajada de balas de 9mm.
Javier recarregou as duas pistolas Glock, olhou para mim e disse meu nome com um tom grave. Os sinos da igreja de Santa Ana tocaram naquele exato momento e eu me arrepiei.
O espanhol respirou fundo e recitou:

- Ezekiel, 25:17. O caminho do homem justo é rodeado por todos os lados pelas injustiças dos egoístas e pela tirania dos homens do mal. Abençoado é aquele que, em nome da caridade e da boa-vontade pastoreia os fracos pelo vale da escuridão, para quem ele é verdadeiramente seu irmão protetor, e aquele que encontra suas crianças perdidas. E Eu atacarei, com grande vingança e raiva furiosa àqueles que tentam envenenar e destruir meus irmãos. E você saberá: chamo-me o Senhor quando minha vingança cair sobre você.

Depois disso, ele prendeu a respiração e caminhou decidido pelo corredor que nos separava da mulher. Ele nem sequer se protegeu. Tinha as armas apontadas para frente e foi pisando nos cadáveres que estavam no caminho.


- Hola, muchacha. Vámonos ahora mismo para el infierno, beber una cerveza con el diablo. Te gusta cerveza, chica?

A mulher apareceu na frente de Javier e tentou atirar novamente, mas o espanhol foi mais rápido que ela e acertou sua perna esquerda e seu ombro direito, fazendo-a cair no chão.

- Olé! – Gritou ele, dando um chute na HKMP5 que estava na mão da mulher.

A arma voou longe. Ele olhou para ela e viu seu rosto marcado pelas pústulas. Olhou para mim e fez uma careta:

- Carajo, más fea que un Perro. Adios, muchacha. 

Foi a última coisa que ela ouviu, antes de sua cabeça explodir em pedaços. Excelente. Mais um Bola de Neve para minhas memórias.

Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Cores: Felipe Prieto
 Fonte: Jovem Nerd

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