À ESPREITA EM UMA NOITE FRIA
Como de costume, a taberna de Nastia estava cheia de homens procurando diversão. E de mulheres tão lascivas que pareciam demônios, hábeis em usar todo tipo de sortilégio para arrancar até a última moeda do soldo daqueles guerreiros.
Em duas das sete mesas de pinho, soldados e suas companhias fumavam narguiles vindos de algum califado ao sul. Um olor inebriante pairava no salão.
Além deles, alguns comerciantes também participavam daquele festejo mundano. Pagavam litros de vinho, despejados nas mesas com a intenção de ganhar a confiança e o apoio dos militares em questões pessoais.
Debruçado num balcão de carvalho, Draszen parecia não se importar com a algazarra. Mente imersa em litros de cerveja, o falcoeiro não se aborrecia com nada ao redor.
Era assim que suas noites terminavam desde que voltou do mal sucedido resgate de Deyan. Deixou o exército, mesmo sob protestos do rei, e também rompeu o noivado com Izbaza. Nastia sentia uma ponta de felicidade com esta situação, mas ver seu amado corroído pela amargura também deixava seu coração partido.
No dia em que retornou, o falcoeiro foi atração na cidade. Era o único sobrevivente da tropa de soldados que partira meses atrás. Todos queriam saber o que se passara na viagem e como havia escapado do ataque dos cavaleiros da escuridão.
Draszen pouco contou para os curiosos, alimentando assim muitas versões, que se espalharam pelo reino. Uns diziam que ele fugira como uma criança amedrontada, deixando para trás aqueles que o auxiliavam na busca pelo filho. Outros iam mais além e diziam que Draszen se fingira de morto e assim, teria sobrevivido.
Contudo, nada daquilo importava para aquele pobre homem. Sua barba e cabelo estavam crescidos. O uniforme da guarda real, nunca mais usou. Mas sim roupas feitas de um tecido churdo, que o faziam parecer um mendigo.
A fatídica noite não era de lua, mas há tempos os assassinatos não eram frequentes. Talvez os cavaleiros estivessem ocupados com outro malefício qualquer. No entanto, a versão mais aceita pelo povo é a de que Draszen tinha feito um pacto com eles para que não mais atacassem.
Nastia viu a caneca do guerreiro se esvaziar e, antes que ele pedisse, pegou um jarro de barro cheio de cerveja para servi-lo. Antes que ela conseguisse despejar a bebida, porém, foi interrompida pela mão forte e truculenta do falcoeiro.
- Esta noite não, Nastia, disse em voz baixa. É noite de lua nova.
- Você vai insistir nessa ronda, Draszen? – lamentou a ruiva. Eles não vão voltar. Há tempos não atacam.
O falcoeiro calou-se e continuou no balcão por mais algum tempo. Sua aparência continuava horrível e seus olhos vitrificados não demonstravam qualquer emoção, até que uma nova horda de soldados adentrasse ao salão da taverna.
Eram doze homens que tinham acabado de serem rendidos por um novo turno e chegavam ávidos por prazeres carnais. Drazen sabia que aquela era a hora de agir. Levantou-se, deu um beijo em Nastia e caminhou de cabeça baixa até a porta de saída, tentando não chamar atenção.
As ruas estavam desertas. A luz de tochas iluminava parcamente o caminho. Draszen vestiu um capuz como o de um monge e se enveredou por um caminho sinuoso, que o levaria a uma parte ainda mais sorrateira da cidade.
O frio era grande, mas já não havia neve. A fumaça saia de sua boca numa respiração ofegante. Presa a um cinto de corda improvisado, uma pequena adaga curva era segurada pelo pomo.
O falcoeiro seguiu sem olhar para trás. Não havia mais em sua mente tempo para devaneios ou culpa. Só um pensamento restava: a missão a ser cumprida.
Passou então pelas casas de pedra com teto de sapê, comuns no centro da cidade. Aos poucos, porém, notou a arquitetura se transformando. Nessa área, as casas eram de madeira, construídas à moda antiga, com toras unidas lado a lado, em sentido vertical.
As ruas eram mais estreitas e as poucas chamas de tochas tremeluziam ao sabor do vento noturno. Draszen encontrou um bom esconderijo num beco sem iluminação. Ali, como já fizera duas vezes antes desde que voltara, ficou esperando. Era sua vigília de lua nova.
A frustração das outras tentativas não era motivo para ansiedade. Draszen havia mudado, parecia outra pessoa. Ironicamente e contrariando sua personalidade instintiva, aprendera a cultivar a paciência como aliada. Talvez porque ela fosse sua única aliada em meio a tantas adversidades.
Foi então que, com um sorriso soturno, o falcoeiro percebeu os gritos vindos de algum lugar próximo. Esgueirou-se pelas sombras e arriscou colocar a cabeça para fora do esconderijo para uma olhadela. Viu o que bastava.
Pessoas nas ruas, com armas em punho, tentavam saber o que estava acontecendo. Cascos dos cavalos da guarda faziam barulho. Logo ele imaginou o incompetente Goran chegando mais uma vez atrasado ao local do crime.
Com a respiração já presa, Draszen pode ouvir passos leves de alguém se aproximando. A presa estava a caminho da armadilha. Era preciso ser rápido e silencioso, para não atrair curiosos e, muito menos, Goran. A última coisa que precisava naquele momento era resolver sua rusga com o chefe da guarda.
Quando os passos se tornaram mais rápidos, o falcoeiro sacou sua lâmina e preparou o bote. O coração num batimento frenético, a adrenalina numa dose lancinante. Do jeito que ele gostava. Prendeu novamente a adaga no cinto de corda e se preparou.
Ao reconhecer um vulto furtivo e franzino num manto púrpura, Draszen lançou-se numa explosão muscular calculada e certeira. Seus braços fortes seguraram o pescoço daquele homem de barba escura, que logo se entregou ao desespero. O sacerdote arregalou os olhos ao sentir o enforcamento.
A voz tentava sair, mas a esganadura era potente e pouco a pouco, o homem foi perdendo as forças e a vontade de viver, até cair inconsciente aos pés do agressor.
Em um só movimento, Draszen o colocou no ombro e começou a caminhar em direção às portas da cidade. O fardo era pequeno, já que o sacerdote era magro e de estatura bem dimnuta. Mesmo assim, Draszen não correu. Fez tudo como planejado, evitando as partes mais iluminadas da cidade e escolhendo sempre as vias mais estreitas.
Depois de algumas voltas, o guerreiro desviou sua rota e caminhou algum tempo em direção ao muro lateral do palácio. Não chegou a se aproximar, com medo de ser percebido por algum sentinela. E assim, a uma distância razoável, atirou sua vítima ao chão, tal qual um saco de cereais.
O homem estava imóvel e sua pele branca parecia feita de mármore como os salões do templo de Nrude. O falcoeiro passou a lâmina lenta e calmamente pela face do sacerdote até chegar aos olhos fechados. Levantou o punho da arma, de modo que a ponta ficasse encostada na pálpebra do sujeito desacordado. Mas, de súbito, guardou novamente a adaga e se levantou.
Com os dois dedos mínimos na boca, o falcoeiro soltou um assobio curto e alto, como se avisasse alguém de sua presença. Olhou novamente para sua vítima e sorriu maliciosamente.
Aguardou alguns minutos, que pareceram horas. Finalmente, viu Izbaza chegando. Aquela que havia sido sua noiva se aproximava, puxando dois corcéis pelas rédeas, o mais silenciosamente possível.
- Você trouxe o açor?
A menina fez que sim com a cabeça e entregou a ave, que vestia um caparão de couro na cabeça. O falcoeiro a colocou em pé, na sela de seu cavalo.
Izbaza também trazia uma saco de tecido rústico, bem grande e grosseiro, onde foi colocado o sacerdote, ainda inconsciente. Draszen se certificou de que ele ainda seguia inconsciente e o atirou sobre o lombo de um dos cavalos. E assim, os dois partiram galopando por uma pequena estrada deserta, que provavelmente estava desguarnecida com a confusão na cidade.
- É por aqui que eles entram e saem da cidade?
- Sim - respondeu Izbaza, sem olhar para o falcoeiro.
- Ora, vejam só. Impressionante nunca ninguém ter notado este acesso. E como sempre está desguarnecido.
- Eu ajudava – respondeu a jovem, já se sentindo desconfortável.
- Não precisa se envergonhar, Izabaza – desculpou-se Draszen, percebendo sua própria inquisição.
Uma hora de galope depois, os dois chegaram a uma pequena propriedade. Uma fazenda distante da cidade, cuja sede era feita de troncos de madeira.
Ao se aproximarem da casa, um homem veio ao encontro dos viajantes. Era velho e não tinha um olho. Draszen o examinou de cima a baixo. Não era a primeira vez que o encontrara, mas o jeito do ancião ainda o intrigava.
- Ele está aqui, velho? – perguntou o falcoeiro, sem esboçar um cumprimento sequer.
- Ali no celeiro, à sua espera, como combinado, respondeu o anfitrião.
Izbaza apeou de sua montaria e deu um abraço forte no velho, que retribuiu o carinho. Então, os dois se voltaram para Draszen e, puxando o corcel pela rédea, seguiram para o celeiro.
Draszen não desmontou de seu cavalo. Queria parecer altivo e poderoso e o corcel lhe dava esta pecha. Izbaza ajudou o ancião a abrir as portas do celeiro, iluminado por algumas tochas.
Os olhos de Draszen miraram os do homem que os esperava. Era o cavaleiro da escuridão que o visitara no passado, em sua casa. Estava de pé, apoiado em uma espada grande e pesada, fincada no solo. Dessa vez não usava o elmo e suas feições estavam à mostra. Um homem alto, loiro com uma barba enorme e embaraçada. Uma figura tenebrosa, mas que não causava temor algum a Draszen.
- Tome o que pediu – bradou o falcoeiro, sem delongas, deixando o corpo do sacerdote estatelar-se no chão do celeiro.
O truculento cavaleiro nada disse, mas sorriu com sarcasmo. Então, Izbaza se aproximou dele. E beijou seus lábios. Em retribuição, um afago na cabeça e um abraço apertado.
Draszen deu meia volta com o corcel e partiu de volta para a cidade.
História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
Nenhum comentário:
Postar um comentário