10 setembro, 2010

1000 Olhos – Parte 1


O FALCOEIRO


Draszen levantou seu corpanzil suado da cama mundana de Nastia. Ela abriu os olhos e viu a silhueta mal iluminada do amante por uma lamparina que queimava óleo aromático e deixava aquela alcova com um olor inebriante.
- Não vá agora, Draszen. A noite mal começou, ainda há tempo.
Draszen bebeu o último gole do vinho amargo e seco que restava em uma caneca de madeira e, em tom calmo e reservado, respondeu:
- Deyan está febril. Não quero deixá-lo sozinho por muito tempo.
Nastia levantou os olhos e esboçou um sorriso avesso.
- Ele precisa de uma mãe. Eu seria uma boa mãe para ele. Cuidaria dele como se fosse meu próprio filho, Draszen.
- Você é uma meretriz, Nastia. Uma boa mulher, mas ainda assim uma meretriz. Não quero ver meu filho sendo achincalhado pelas crianças da cidade por ter uma mãe que ganha a vida vendendo o próprio corpo.
- Sabe que eu largaria isso – disse ela, baixando a cabeça e fechando os olhos.
- Nastia, você é uma boa alma e terei eternamente um apreço especial por você, mas sempre será uma prostituta aos olhos do povo. Não é o futuro que quero para meu filho.



O guerreiro vestiu seu uniforme da guarda, virou-se e partiu plácido, sem dizer adeus. Nastia atirou uma jarra de porcelana, já sem vinho, contra a parede. Respirou fundo e vociferou:
- Vá para aquela cadela obediente que frequenta o palácio real. Vá para sua vagabunda, Draszen! A noite ainda nem começou.
A taberna de Nastia estava cheia e alguns companheiros de Draszen estavam por ali, se divertindo, bebendo muita cerveja e aliviando a libido com as prostitutas. Durante as noites de folga, e às vezes até nas de serviço, os soldados do rei podiam ser encontrados naquele local, sobretudo os solteiros.
- Onde vai, Draszen? Ainda é muito cedo – disse um soldado ao ver o companheiro partir sem se despedir.
- Não me irrite, Wiik. Aposto que sua esposa acha que já é tarde. Ou talvez ela encontre conforto nos braços de outro soldado que não a deixe sozinha todas as noites – respondeu Draszen, arrancando risos dos guerreiros.

- Vá embora então, meu amigo. Seu senso de humor não está dos melhores hoje – desdenhou Wiik, sem perder a paciência.
Draszen era um homem fechado e, apesar de admirado por quase todos no exército real de Anikka, era bastante lacônico e austero. Naquela noite, o soldado saiu mais cedo do que de costume. Não porque seu filho Deyan estivesse realmente febril, mas porque era a primeira noite de lua nova.
As primeiras noites de lua nova quase nunca eram calmas. Eram as noites em que os guerreiros da Raça da Noite, se aproveitando da ausência do brilho lunar, espreitavam a cidade e eventualmente atacavam os desavisados da madrugada.
A Raça da Noite era o nome que a tradição de Anikka elegeu para se referir a um grupo de cavaleiros que vinham do leste e que perturbava a harmonia daquele reino. Eram homens corpulentos, com barbas enormes e emaranhadas e olhos frios e opacos, que lhes davam um aspecto vil. Poucos estiveram diante desses guerreiros face a face e sobreviveram para descrevê-los, mas quem teve esta sorte dizia que eles emanavam toda a essência do mal.
Fazia tempo que a guarda da cidade conseguia afugentá-los antes de tentarem algum ataque, mas Draszen temia pela segurança de seu filho. Não à toa. Quando criança, Draszen teve uma experiência marcante com esses cavaleiros. Uma história que o assombrava durante toda a vida. E da qual ele não conseguia se ver livre.
Longe da Taberna, a noite era silenciosa e pouco iluminada, por parcas lamparinas. Raros eram os que se arriscavam a perambular sem destino e até mesmo os guardas do rei preferiam ficar em postos de vigilância, ao invés de fazerem rondas pelas ruas.
A casa de Draszen ficava afastada da cidade e ele tinha pressa de chegar e encontrar o filho. Determinado em voltar ao lar, nem percebeu o barulho dos cascos de um cavalo golpeando o chão de pedra, bem atrás dele.
- Draszen – berrou uma voz áspera e viril.
O guerreiro olhou para trás e viu um cavaleiro se aproximar rapidamente. Em um movimento rápido, Draszen sacou sua espada e se preparou para o pior.


- Guarde sua lâmina, a não ser que queira ser preso por ameaçar o chefe da guarda real – disse calmamente o cavaleiro.
- Droga, Goran. Pensei que fosse um cavaleiro da escuridão. A Raça da Noite.
- Se fosse um cavaleiro da escuridão, você não estaria vivo para sacar sua espada. Não me ouviu chegar galopando, mesmo com as ruas desertas. Onde está com a cabeça?
- Não me amole. Só estou indo para casa, ficar com meu filho.
- É melhor contratar um guarda-costas para o garoto. Se ele depender de ti para salvá-lo, terá o mesmo destino do teu irmão.
Draszen franziu o cenho e mordeu os lábios ao ouvir aquelas palavras. Virou-se lentamente, embainhou a espada e partiu sem responder nada ao chefe da guarda.
Goran era um grande guerreiro, mas um homem ignóbil, que não valia a atenção de qualquer um que tivesse o mínimo de bom senso. Seu aspecto era repugnante. O bigode ensebado e a careca repleta de eczemas garantiam a aversão das crianças, que se assustavam à sua presença. Porém, era sua truculência no lidar com as mulheres que fazia com que todas as prostitutas inventassem toda sorte de impedimentos para não precisar atendê-lo.
- Vou até a taberna visitar aquela vagabunda a quem chamam de Nastia. Belos seios. Macios e suculentos. – disse o cavaleiro – Uma anca larga e muita sede de sexo.
Draszen não se deu ao trabalho de olhar para trás ou responder à provocação de Goran e continuou seu caminho para casa. Todos os dias o chefe da guarda tentava tirar-lhe o juízo, mas invariavelmente, suas provocações eram em vão.
Após o encontro com o guerreiro, Draszen apressou o passo. No entanto, teve o cuidado de prestar mais atenção a sua volta. Nada de estranho aconteceu e, em casa, Deyan estava dormindo na cama do pai, do mesmo jeito que ele havia deixado, horas atrás.
- Graças à Nrude – agradeceu o guerreiro, passando a mão em um amuleto feito de osso, pendurado no pescoço.
No dia seguinte, Draszen acordou cedo, deu comida aos seus dois cães e partiu para o castelo real, com Deyan ainda adormecido em seu colo.  Essa era uma rotina que o guerreiro fazia diariamente há anos. Como falcoeiro real, ele gozava de certos privilégios, como deixar seu filho aos cuidados das servas da rainha.
Durante gerações, o amor por aves de rapina fora notório na casa real de Anikka, mas a obsessão do Rei Andras extrapolava toda e qualquer tradição. Tanto que o monarca ordenou a mudança no brasão do reino para que um falcão voante sobre o campo se tornasse seu elemento principal.
Além das regalias, Draszen contava com a amizade pessoal e sincera do rei. Seu trabalho era simples para alguém treinado desde a infância na arte da falcoaria, mas sua dedicação ao ofício conquistara a admiração do monarca.
- Como estão esses bichanos, meu caro Draszen? – questionou Andras ao ver seu súdito checar os viveiros onde dormiam as aves.
- Como sempre, majestade: saudáveis e vorazes.
- Teremos uma bela caçada em dez dias. Quero impressionar os lordes do norte.
- Eles não o desapontarão, majestade.
- Andras, meu caro Draszen. Pode me chamar por Andras quando estivermos a sós. Tenho-lhe como um amigo. Um dos poucos em que confio.
- Majestade, eu acredito em sua amizade e a tenho como preciosa, mas o senhor é o rei estando a sós, ou no meio de uma multidão.
- Que seja – replicou o rei, fazendo um muxoxo.
O monarca e Draszen caminharam, observando os viveiros e continuaram conversando sobre o sol do inverno que acariciava suas peles com algum calor.
- Soube de ontem, Draszen?
- Não, meu senhor. Aconteceu algo no palácio?
- Não no palácio. Na cidade, de madrugada. Mais uma daquelas mortes horríveis. Fazia tempo que não acontecia.
Draszen cerrou as sobrancelhas e segurou com força no contrapeso de sua espada.
- Os cavaleiros? A Raça da Noite?
- Ao que tudo indica. O coitado era um de nossos melhores ferreiros. Goran o encontrou sem olhos na rua do mercado, pela manhã. Ninguém viu nenhum cavaleiro, mas ele estava sem olhos. Com certeza foram aqueles malditos.
- Eu encontrei Goran na rua, mas ele não me disse nada. Deve ter acontecido depois de nos encontrarmos.
- Ele continua te aborrecendo, meu amigo?
- O de sempre, majestade. Nada que deva importuná-lo, meu rei.
- Goran é realmente inconveniente. Ele nutre por ti uma inveja desmedida. Tem ciúmes de você com Izbaza e de nossa amizade. Mas ele é um excelente guerreiro e é disciplinador. Não posso me desfazer dele, caso contrário, já o teria feito. É um ser asqueroso, mas não encontraria um chefe da guarda melhor em Anikka.
Em meio a tantos afazeres, a manhã passou rápida e quando o rei Andras e Draszen se deram conta, já era hora do almoço. O monarca foi chamado por um pajem a serviço da rainha e o falcoeiro seguiu para o refeitório, onde almoçava todos os dias com os demais soldados.
Ao chegar ao local, Draszen se deparou com uma cena que, enfim, o deixou realmente nervoso. Goran segurava seu filho pelas calças como se ele não passasse de um filhote de cão seguro pelo cangote.
- O que tem nessa cabeça fétida, seu porco nojento – disse o falcoeiro enfurecido.
- Tenha calma, Draszen, o garoto precisa deixar de ter medo das alturas – respondeu o soldado, elevando a criança acima de sua cabeça.
Draszen saltou na direção do soldado e tirou o filho de suas mãos. O garoto estava assustado, mas não verteu nenhuma lágrima. O pai o tranqüilizou e os dois fizeram a refeição em uma mesa afastada da maioria dos soldados.
Alguns dos guardas riram da brincadeira de Goran. Na maioria, eram os bajuladores que não ousavam contrariar o líder e achavam graça em tudo que ele fazia. Mas aquele tipo de atitude não era bem vista pelos demais que, apesar de não entrarem em atrito com Goran, achavam tais provocações desnecessárias.
Depois do almoço, Draszen vestiu sua luva de adestramento e foi ao campo com uma das aves do rei para iniciar o treinamento. Deyan acompanhava o pai e, apesar de não pronunciar nenhuma palavra, assistia a tudo com muita atenção.
- Este terço é mais arredio do que os falcões, Deyan. Vai dar mais trabalho do que os demais, mas será um campeão.  - disse Draszen, retirando o caparão que cobria a cabeça da ave.
Ao encontrar a luz do sol, a pupila da ave se reduziu a um pequeno botão negro, deixando ainda mais realçada sua íris vermelha e brilhante como um rubi. A ave era um açor forte e voraz, com os olhos mais bonitos de que se tinha notícia.
- Veja como ele segura forte a luva. Está louco para meter as garras na minha carne, mas vou dobrá-lo com o tempo. Não é hábito calçar caparão em açores, mas esse aqui precisa se acalmar um pouco antes de deixá-lo à vontade.
O menino observava seu pai sem piscar os olhos e, ao longe, mais duas observadoras admiravam o falcoeiro em ação. A rainha Smiliana e sua aia Izbaza estavam, como de costume, na janela da mais alta torre do palácio e, embora não conseguissem enxergar a fisionomia de Draszen, apreciavam seus movimentos no campo.
- Quando vocês irão se casar, Izbaza?
- Majestade, eu fico envergonhada em falar sobre esse assunto com a senhora.
- Ora, ora, mas se fui eu mesma quem lhe arranjou esse noivado. Acho que vocês já estão demorando demais para esse enlace. Esse menino já tem uns três ou quatro invernos e nunca teve uma mãe. Ele precisa de uma figura feminina em casa.
- Deyan já passa as manhãs comigo, majestade. Eu o educo como posso.
- Não é o bastante. Você precisa estar presente na casa deles. Draszen também precisa de uma esposa. Ele é muito solitário.
- Não é o que as mulheres da taberna dizem, majestade.
A rainha não gostou do que ouviu de sua criada e retrucou prontamente.
- Não diga bobagens, minha querida. A taberna é só para aliviar a tensão dos soldados. Ele precisa de uma esposa dedicada em casa.
Izbaza enrubesceu as maçãs do rosto e teve vontade de continuar a discussão, mas a sensatez falou mais alto e ela se calou, guardando suas opiniões para si.
Quando a noite caiu, Deyan estava esgotado e dormiu no colo de seu pai. Draszen seguiu para o alojamento das criadas e esperou pacientemente por Izbaza. Ela demorou, mas chegou cheirosa como uma flor do campo.
- Deixe-me acomodá-lo na cama, Draszen – disse ela, já tomando o garoto do colo do pai.
Izbaza adentrou o dormitório e em seguida, voltou ao encontro de seu noivo. Draszen a beijou na testa e eles saíram caminhando pelo pátio interno do palácio.
- A rainha me cobrou novamente uma data para o casamento, Draszen.
- É, o rei me lembra disso a toda hora também. Nós precisamos marcar uma data em breve.
Os dois discutiram aquele assunto por alguns momentos, mas nenhum dos dois de fato queria marcar data alguma. Draszen gostava muito de Izbaza, mas a menina, que era uns dez anos mais nova do que ele, não o deixava entusiasmado. Ela era linda e tinha a graça da juventude, porém Draszen gostava de mulheres maduras, como Nastia, com seios fartos e pernas grossas. Izbaza era bem magra e tinha seios pequenos e delicados como pêssegos.
- Eu irei marcar uma data logo após adestrar esse açor de olhos vermelhos. Estou sentindo que este irá me dar trabalho. Devo terminar com ele antes da caçada real, ou estarei em apuros.
Izbaza segurou seu vestido e baixou a cabeça consentindo. Apesar de admirar o falcoeiro e adorar Deyan, a garota também não mostrava entusiasmo por aquele compromisso. Achava-o atraente e atencioso, mas talvez pela falta de ânimo de Draszen, a jovem não se deixava envolver.
- Muito bem, preciso ir para casa. Amanhã tenho que começar bem cedo e não quero atravessar a cidade muito tarde. Ontem tivemos outro ataque dos cavaleiros e hoje será noite sem lua novamente.


O falcoeiro partiu com seu filho adormecido no colo, deixando a jovem Izbaza com um beijo na testa.

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História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações:
Victor Negreiro @estivador
Revisão:
Lucio Nunes @Lucio_N
Fonte: JovemNerd

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