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Javier era um cinéfilo. Tinha centenas de filmes em casa. Alguns ele revia várias e várias vezes. A energia elétrica de sua casa era basicamente para a TV e para o aparelho de card disk.
Nós fomos atrás da garota russa e, como um bom amante do cinema, ele provavelmente já sabia que toda vez que uma mulher linda entra na história, é porque alguma merda vai acontecer. Dessa vez não foi diferente.
O endereço que conseguimos era o de um prédio baixo, próximo ao mercado inglês, do outro lado do Rio Lee. Ao lado da entrada do prédio havia uma barbearia, com a luz de um lampião acesa e um homem de avental branco ouvindo música do século XX.
Eu e Javier entramos na tal barbearia e o cara imediatamente abaixou o som. Ele tinha um largo sorriso e a pele escura. Acho que era indiano, ou paquistanês, mas não vi nenhum vasinho de charas por ali.
- Querem fazer a barba? – perguntou, segurando uma navalha na mão.
Nos entreolhamos e, simultaneamente, respondemos com uma negativa agradecida. Parecia que tínhamos ensaiado, mas foi uma reação natural que qualquer pessoa sensata teria. Não estávamos nem um pouco dispostos a dar nossos pescoços à mão de um estranho com uma navalha.
- A menina russa – disse Javier, encurtando a conversa.
- Ahhh, a garota russa. Vocês são amigos dela? Ou também querem matá-la? Ela é maluca – comentou o barbeiro, em um inglês pior do que o de Javier. Linda, mas maluca!
- Não. Não somos amigos dela. Mas precisamos entrar em contato com ela. São apenas negócios.
Olhei para Javier, imaginando se ele estava dizendo aquilo para disfarçar, ou se era a verdade. O barbeiro percebeu meu olhar e aumentou o som. Era uma música estridente, cuja letra falava do medo de escuro. Até que era uma boa música.
- Eu sou o proprietário do prédio. Ela me pagou adiantado uma semana de aluguel e ficou por três dias. Daí, chegaram aqueles caras barra pesada e teve tiroteio. Ela é uma verdadeira filha da puta dos infernos! Tem uma cara de anjo, mas matou quatro caras com uma Kalashnikov. Foi embora.
Mais uma vez, os olhos de Javier brilharam.
- Os coreanos estavam atrás dela?
- Sim. Os Dragões tentaram matá-la. Mas ela deu um jeito neles e sumiu.
De novo eu fiquei pensando se “coreanos” era apenas mais uma maneira de chamar os orientais, ou se Javier sabia algo mais sobre aqueles malditos.
- Podemos entrar no prédio, senhor? Pediu Javier.
O barbeiro fez que sim com a cabeça e nos indicou o quarto em que a russa tinha ficado.
Subimos uma escada de madeira cheia de degraus soltos e fomos direto para o quarto 1408. O chão ainda estava cheio de sangue e as paredes, cravadas de tiros de armas de diversos calibres.
Javier abriu as gavetas de uma cômoda, tentando achar alguma pista que nos levasse à garota, mas não encontrou nenhum vestígio.
Fui até a janela e olhei para o céu, que já escurecia. Viajei um pouco nos meus pensamentos e voltei com um susto ao ouvir um tiro.
Olhei para trás e vi Javier com sua pistola na mão. E o barbeiro, caído no chão ensangüentado.
- O que houve?
- O barbeiro ia nos matar, garoto – disse o espanhol, apontando para uma escopeta próxima ao corpo do barbeiro.
- Eu nem ouvi ele chegar – disse assustado.
- É, eu também não. Mas o vi no espelho. Dessa vez demos sorte.
Toro foi para perto da janela onde eu estava e olhou para o céu.
- Já é tarde.
Pegamos o caminho de volta para o cais de St Patrick, mas ao invés de seguirmos para o Druida Verde, entramos na Mac Courtain. Lá ficava o Gresham Metropole Hotel, que um dia fora 3 estrelas. Era um prédio de arquitetura antiga, já bastante depredado. Muita gente se mudou para hotéis depois da varíola. Na América, eu via gente dando graças aos céus pela pandemia e abandonando seus trailers para morar em hotéis de luxo.
Na Irlanda não foi diferente, mas aquele hotel em especial tinha sido dominado pelos hooligans do Cork City Foottball Club. Era o local de concentração antes dos jogos. Se é que se pode chamar aquilo de concentração.
Os caras do Catholics tiveram mais sorte com as instalações. Como eles mandavam na parte oeste da cidade, optaram por invadir um hotel bem melhor, o Kingsley Hotel, que ficava às margens do Lee. Mas para os Celtics, o Gresham era muito melhor localizado, pois estava perto das prostitutas da Rua Devonshire.
De fato, as garotas da Devonshire eram um show à parte e a concentração não era bem o que eu esperava. Na verdade, aquilo foi inacreditável. Depois do jantar, os Celtics se reuniram para falar do jogo e escrotizar os adversários. Lógico, regados a cerveja e whisky. Graças ao senhor, porém, o jogo estava marcado para domingo a tarde. Se fosse pela manhã, com certeza seria um W.O. duplo.
Eu e Javier fomos até a Devon, trazer algumas meninas para divertir o pessoal. O espanhol foi muito bem atendido por uma prostituta holandesa que tinha olhos cinzentos e cabelos loiros. Era linda e tinha poucas marcas na pele, mas depois, descobri que, apesar de linda, ela fedia muito. Désiré era o nome dela.
As horas seguintes foram como uma orgia romana. E eu fiz tudo o que não tinha feito durante toda a minha curta existência.
De manhã, minha cabeça parecia que ia explodir e eu não tinha forças sequer para me levantar da cama. Mesmo antes de abrir os olhos, busquei uma garrafa de água no criado mudo. A garrafa foi pouca para saciar minha sede. Resolvi me levantar
O pequeno banheiro fedia à azedo por causa de um vômito que ninguém se incomodou em limpar. Talvez fosse meu, mas sei lá. Lavei meu rosto e bebi água da torneira. Eu estava em frangalhos e não via perspectivas de melhorar. Pedi a Deus que me socorresse, mas fiquei com a consciência pesada e desisti da intervenção divina.
Com os olhos já sem remelas, voltei lentamente para o quarto e vi uma cena bizarra demais para ser verdade. Na minha cama dormia uma garota anã, vestida em couro preto, segurando a ponta do dedo daquele maldito irlandês que me chamava de McColish. Ele, por sua vez estava nu aos pés da cama. Minha cabeça explodia! Que inferno teria acontecido naquele hotel?
Alguns flashes da noite anterior me vieram à mente e aquilo foi vital para decisão que eu tomei. Tive a consciência de que, se ficasse ali com aqueles irlandeses degenerados, minha vida e tudo o que eu acreditava seriam enterrados numa cova rasa.
Decidi que iria deixar a Irlanda e decidi parar de beber também. Eu sempre fui um cara solitário na América e conheci a amizade e o companheirismo na Europa, mas aquilo estava indo longe demais e eu não tinha estômago para agüentar tudo aquilo.
Desci para o saguão do hotel e no caminho fui ficando mais deprimido. Eu via Celtics jogados no chão, vomitados pelos corredores e até um que impedia a porta do elevador de fechar. Muitos ainda nem tinham dormido e continuavam a beber, mas a maioria estava apagada.
Javier estava na frente do hotel resolvendo os detalhes do traslado para o estádio. Quando me viu, levantou as sobrancelhas e sorriu.
- Ezekiel, você está um trapo, mi hermano. Que pasa? Um trem holandês passou por cima de você. Ou será que foi um trenzinho bem pequenino?
Eu também sorri, só que completamente sem vontade. Perguntei se precisava de ajuda. Aquele era um evento que mobilizava quase toda a cidade e que, apesar das regras de proibição de armas, sempre resultava em encrenca. Javier cuidava para que a confusão não fosse além de uma simples pancadaria.
Durante as partidas de futebol, reuniam-se cerca de 7 mil pessoas e, por incrível que parecesse, nunca havia sido registrado nenhum disparado. É lógico que, na ausência de armas de fogo, a criatividade irlandesa se sobressaía. Javier me contou que os maiores perigos eram as fundas improvisadas com camisetas. Falou também que já havia ficado desacordado mais de uma vez por causa de pedras atiradas em sua cabeça. Talvez por isso, não batesse muito bem da cuca.
A saída da caravana seria às 15h e alguns ônibus já estavam a postos para levar o pessoal ao estádio. Pouco a pouco foram chegando carros de torcedores que acompanhariam a comitiva. Era um festival de bandeiras e camisetas verde e brancas.
Antes de partirmos, porém, Javier viu uma moto em alta velocidade vindo pela calçada em nossa direção. O espanhol puxou uma pistola da cintura e apontou.
Montada na moto estava uma garota de capacete e uma roupa de couro branca, daquelas que antigamente eram usadas por pilotos de motovelocidade.
Javier fitou-a com os olhos e baixou a arma: era a garota russa.
- Ruslana – murmurou ele, vendo-a retirar o capacete.
- Chegou a hora, Javi. Eu tenho a cura final.
Eu fiquei tão chocado com a beleza daquela mulher, que nem tentei entender sobre o que eles estavam falando. Devia ter prestado mais atenção, mas não consegui.
Embora Javier não tivesse dito nada, estava claro que ele já a conhecia. Isso não o impediu de também ficar petrificado com o encanto da russa.
Por alguns segundos eu não ouvi o que ela dizia. Só via o suave movimento de seus cabelos castanhos caindo à frente dos olhos azuis mais brilhantes que eu já tinha encontrado. Seus lábios carnudos abriam e fechavam delicadamente, me deixando hipnotizado. Para completar, assim como Javier, ela não tinha pústulas.
O espanhol a abraçou e então eu voltei à realidade.
- Essa é Ruslana, Ezekiel. Uma amiga de muito tempo.
Eu não sabia o que dizer e apenas estiquei a mão, que ela apertou vigorosamente.
Ruslana desceu da moto, tirou a parte de cima do macacão, deixando a mostra uma camiseta do Cork City. Ela conversou com Javier em particular por alguns minutos e quando voltou, ele tinha um expressão de alívio no rosto. Imaginei que ela trazia boas notícias. Talvez uma forma de vencer os orientais, ou algo que deixasse as nossas vidas mais alegres.
- Ezekiel, você ainda quer ir para Londres? Perguntou Javier, se aproximando novamente de mim.
- Como assim? Você vai para lá?
- Essa noite partiremos. Eu e Ruslana vamos resolver um problema que está pendente há alguns anos. Um plano que não deu certo completamente e que agora pode ser concluído.
- Mas e os seus cães? E os orientais?
- Bem, quanto aos perros, eles ficarão bem com Sean. E, sobre os orientais, por enquanto só posso dizer que esse plano tem tudo a ver com esses malditos.
- Ok, Javier, eu ia mesmo falar isso para você. Hoje de manhã, quando acordei, percebi que essa vida não é para mim. Eu preciso ir para algum lugar mais calmo. Longe dessa agitação de futebol e cerveja.
- Olha cara, Londres não é exatamente um lugar calmo. Lá também tem futebol e hooligans. A cerveja não é tão boa, mas nunca falta.
- Na verdade, eu estava pensando em ir para Israel, Javier. Quero conhecer a terra onde Cristo nasceu.
- Você quer uma dica, hermano? Fique longe do deserto. Se você acha que aqui está movimentado, não imagina o que acontece por lá. Vá para a Noruega, as coisas são mais calmas por lá. Chegam a ser monótonas.
- Não, Toro. Eu sinto que meu destino é ir para Jerusalém. Algo dentro de mim diz que lá eu encontrarei a minha paz.
- Tudo bem, em breve todos os lugares desse planeta vão estar bem mais calmos. Pode confiar em mim.
Ruslana ficou me observando por alguns instantes como se me estudasse, mas preferiu não dizer nenhuma palavra.
Como era previsto, saímos atrasados, mas, ainda assim, a tempo de chegar ao estádio antes das 16h. Fiquei maravilhado com o estádio lotado. Aquilo seria minha despedida da Irlanda.
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Revisão: Lucio NunesFonte: Jovem Nerd
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