Sitala é um conto seriado apocalíptico de Fernando “Tucano” Russell, com ilustrações de Brunner Franklin.
Eu não sei exatamente se essa é uma história sobre o que aconteceu com o mundo, ou se é a história sobre o cara mais insano que eu conheci na minha vida. Está mais para a segunda opção, mas não dá para falar de um, sem falar de outro, então, vou começar pelo o que eu vi e ouvi acontecer primeiro.
Eu era garoto e não entendia quase nada no começo. O primeiro fato que eu me lembro é que, quando eu tinha uns nove para dez anos, uma nova doença apareceu e logo criou pânico no mundo inteiro. Depois, fiquei sabendo que, na verdade, não era uma nova doença, e sim uma doença antiga, mas em uma nova versão.
Logo que a paranóia começou, eu fiquei assustado e fui pesquisar. Li um artigo na Wikipedia e isso ficou gravado na minha mente como tatuagem. O verbete dizia: “A varíola matou quase 500 milhões de pessoas só no século XX.” Eu imaginei que seria um período ruim pra cacete, mas não imaginei que ia dar numa merda tão grande.
A pandemia começou na Ásia Central. No início, o mundo todo começou a achar que alguns russos tinham vendido o vírus da varíola para algum extremista islâmico. Aliás, naquela época, era moda culpar Alá. Toda merda que acontecia era culpa dos caras de turbante.
Até hoje ninguém sabe o que realmente aconteceu. O fato é que a doença se alastrou tão rápido que foi impossível continuar com as investigações. As agências de inteligência tentaram em vão descobrir a origem do vírus. As pesquisas envolveram várias nações, a OMS e o CCD americano, mas em pouco tempo, ninguém se importava mais com quem poderia ter sido o culpado. As pessoas só queriam se salvar.
Pode ser ingenuidade minha, mas para mim, o mais provável é que o vírus tenha sido uma mutação natural do orthopoxvirus da varíola. Eu não sou enendido, mas eu sei que essas coisas acontecem.
O que eu entendi é que o grande problema desse novo vírus da varíola, é que além de mais agressivo, também podia ficar hospedado nas células de gatos domésticos. Os cientistas só se deram conta disso muito tarde.
Cara, aquilo foi horrível. Na minha casa, minha irmã foi a primeira. Nosso gato estava infectado e passou o maldito vírus para ela. No primeiro dia, ela parecia que estava com uma gripe forte. Nos dias seguintes a febre aumentou e ela começou a vomitar intermitentemente.
Minha mãe rezava para que fosse apenas uma intoxicação passageira, mas no fundo, todos nós sabiamos o que ela tinha. Em quatro dias as feridas começaram a aparecer. Primeiro nos lábios. Depois no resto do corpo. Pústulas é como chamam.
Em uma semana todos nós estavamos contaminados. Foi nessa época que meu pai, ao ver na TV que os cientitas haviam descoberto que os gatos eram hospedeiros da doença, pegou a espingarda e estourou a cabeça do Bola de Neve. Era miolo de gato por toda sala. Era um gato idiota, com um nome idiota. Mas minha irmã chorou.
Minha irmã morreu no nono dia após o aparecimento dos sintomas e nem pudemos enterrá-la. Meu velho, com muito esforço físico e emocional, levou-a para o nosso quintal e queimou o corpo dela com gasolina.
A última alegria dos meus pais foi saber que meu organismo estava reagindo à doença. Eu cheguei a ter pústulas e até hoje ainda guardo marcas no meu rosto, mas a doença retrocedeu e eu sobrevivi para ver meus pais definharem. Eu os queimei no quintal e depois de um tempo, me mandei.
As autoridades que haviam sobrado diziam que os infectados que sobrevivessem deveriam procurar os centros médicos para análise de anticorpos. Eles achavam que a chave para a cura poderia estar no sangue dos sobreviventes.
Eu não fui a porra de centro médico nenhum. Não ia virar cobaia na mão de cientista. Pode ser egoísmo meu, mas se eu me salvei foi porque Deus quis. Talvez isso tudo possa ser mesmo um castigo Divino.
Na minha rua sobraram umas dez pessoas. Alguns deveriam ter morrido. O primeiro cara que eu matei na minha vida foi um vizinho. Eu tinha treze anos e minha família estava morta no meu jardim, e o cara estava invadindo as casas para roubar os pertences dos mortos. Foi mais fácil do que eu pensei. Quando ele entrou no quarto da minha irmã, tomou um balaço no meio da cara. Por um momento, me lembrei do Bola de Neve.
O cara não tinha marcas de pústulas no rosto. Tudo bem, depois do tiro, nem rosto ele tinha mais. Mas fiquei imaginando se ele não tinha sido infectado, ou se os anticorpus dele tinham sido mais eficientes do que os meus.
Fiquei olhando para aquele corpo com a cabeça aberta, jogado em um quarto de criança. Meu ombro estava doendo muito por causa do coice da arma. Eu revistei o cara e só encontrei uma pistola 380. Olhei para aquela cena de novo, me sentei no chão e comecei a chorar sem parar.
Eu tinha apenas treze anos. Matar aquele merdinha foi fácil. Duro era pensar na vida sem meus pais, sem os amigos do ginásio, sem ninguém em quem confiar. As ruas estavam desertas. O mundo estava vazio.
Antes da pandemia, a população no planeta era estimada em mais ou menos 6 bilhões de pessoas, mas em cinco anos, só tinhamos sobrado nós. Os setecentos milhões de sobreviventes que, de alguma forma eram imunes à doença.
Cara, isso foi o caos. As lavouras ficaram abandonadas, pois quase cem porcento da população rural morreu. As usinas de energia foram para o inferno porque não havia mão-de-obra especializada o suficiente para operá-las. Pior nas usinas atômicas. Muitas delas entraram em colápso e contaminaram regiões inteiras.
Na Alemanha e nos Estados Unidos, a merda foi pior. Eu acho que nas usinas nucleares desses países só sobraram funcionários do tipo Homer Simpson. O resultado foi devastação radioativa numa área de milhares de milhas. Quem não morreu de varíola, morreu de radiação ou ficou com câncer e sem tratamento. Também não duraram muito.
O cheiro das ruas era de carne podre. Os primeiros a morrer foram incinerados, como minha irmã e meus pais. O grande problema é que depois de um tempo foi faltando gente para queimar tanto cadáver. As cidades iam ficando entupidas de corpos e cada vez mais perigosas.
Eu tenho certeza de que isso tem a ver com o apocalipse. Eu li um livro há muito tempo atrás sobre a batalha dos anjos no apocalipse. São todos uns malditos. O autor se dizia ateu, mas eu sei que aquilo era verdade. E eu vivi isso. Primeiro a peste, depois a fome. E posso dizer com toda convicção, a fome foi pior que a varíola. Não em números, é claro. A doença matou quase 5 bilhões de pessoas, enquanto a fome exterminou “apenas” 500 milhões. As cenas que vi no período de fome foram mais bizarras que qualquer outra.
Quando a maioria dos alimentos produzidos tinham estragado ou acabado e as fazendas não cultivavam mais alimentos, começamos a caçar. Mas não caçamos apenas animais. Quando acabaram os veados do Central Park, vi gente caçando os vizinhos para comê-los no jantar.
Foi por isso que eu fugi de Nova York. Eu não era nenhum Plissken, mas consegui escapar da barbárie e seguir para o velho mundo em um navio cargueiro que levava gente desiludida para a Europa. O capitão do navio estava lucrando muito com isso, mas durante a viagem ocorreu uma briga e mataram o capitão.
A viagem que era para durar menos de um mês, acabou demorando dois meses e meio e foi um verdadeiro inferno. Mas essa história eu conto mais para frente, porque o mais importante é o que eu encontrei no antigo continente.
A viagem que era para durar menos de um mês, acabou demorando dois meses e meio e foi um verdadeiro inferno. Mas essa história eu conto mais para frente, porque o mais importante é o que eu encontrei no antigo continente.
No final das contas, o mundo se tornou uma idade média pós-moderna. Um tanto estranho esse conceito que eu inventei, mas tem uma certa lógica. Nós tinhamos tecnologia, mas não podiamos usá-la a vontade, pois faltava energia a toda hora e faltava manutenção. Nós tinhamos armas de fogo. Aliás, isso nós podiamos usar a vontade, pois munição tinha de monte. A população era mínima e o dinheiro não tinha valor. Estavamos em uma sociedade feudal no século XXI.
Bastante irônico. No século XX, 500 milhões morreram pela varíola. No XXI, só sobraram 500 milhões. Eu me recordo de ter visto vários filmes em que o futuro era dominado por grandes corporações, ou que governos fascistas dominavam o mundo com mão de ferro. Eu deveria ter visto 12 Macacos antes.
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Fonte: Jovem Nerd
Nenhum comentário:
Postar um comentário