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O estádio estava lotado! Parecia o Superbowl: era grandioso, emocionante e me fazia lembrar da minha infância. Tive várias memórias dos momentos felizes que passei com meu pai na América.
As duas torcidas não entravam em confronto antes do jogo terminar. Era tudo muito organizado e as brigas tinham hora e local marcados. Um caos ordenado, eu diria. De um lado uma multidão vestida de verde, gritando o nome de seus heróis e do outro seus oponentes em roupas escarlates, irados e com testosterona jorrando pelos poros.
Ruslana estava ao meu lado e parecia íntima de estádios de futebol. Bebia cerveja, gritava e cuspia como uma verdadeira hooligan. Mesmo vociferando palavrões, ela continuava linda. A arquibancada lotada me fez ficar bem perto dela. Eu pude sentir aquele cheiro maravilhoso que seu corpo exalava, além de encostar-me àquela pele macia e sedosa que deixava qualquer um louco.
- Hoje serão duas vitórias! Vamos atropelá-los no campo e no asfalto – gritou um velho barbudo ao meu lado, fazendo-me voltar ao mundo real.
Eu fiz que sim com a cabeça, mas estava receoso. Eu achava uma idiotice brigar por causa de um jogo de futebol, mas eu estava com eles e iria até o final.
Os dois times entraram em campo debaixo de aplausos, gritos e vaias. Javier foi o mais ovacionado do lado dos Celtics. Também foi o mais xingado do outro lado do estádio. Não era para menos, o espanhol gostava de provocar a torcida dos Catholics antes, durante e depois das partidas.
O jogo começou mal para o nosso time. Os vermelhos marcaram primeiro e eu fui entendendo o porquê de tanta paixão e violência. Eu tinha entrado naquele mundo a pouquíssimo tempo e já estava começando a me contaminar com a doença dos hooligans. Ouvir a torcida adversária gritar gol já foi difícil, mas ouvir os insultos me deixou enfurecido a tal ponto que comecei a ansiar pelo confronto.
– Malditos – pensei alto. Vão ter o que merecem quando o jogo acabar. Ruslana achou graça na minha reação.
A raiva só passou um pouco depois, quando Javier começou a marcar gols. Foram três no primeiro tempo. Cada um deles foi seguido por uma explosão de alegria na torcida e os deboches que faziam despertar a cólera nos Catholics.
O segundo tempo foi difícil. O Cork City entrou achando que o jogo estava liquidado e se descuidou, deixando o adversário empatar. Eles chamavam de salto alto!
O jogo era muito dinâmico e meu coração disparava a cada lance de perigo. Javier estava impaciente com os erros dos companheiros e praguejava a todo momento.
Já estávamos nos preparando para o pior no jogo, mas o que aconteceu ultrapassava toda e qualquer previsão pessimista. Perto do final do jogo, um portão de ferro que dava acesso à rua tombou com um estrondo e um jipe amarelo invadiu o campo, deixando todo estádio atônito.
- Que merda está acontecendo? – Gritou Ruslana.
Eu olhei para o jipe e percebi que era Sean quem o dirigia.
- Cacete! Tem alguma coisa errada!
- Lógico que tem. Tem uma porra de um jipe amarelo em campo – retrucou o velho barbudo.
O jipe parou e alguns jogadores dos dois times partiram para cima do motorista. Javier percebeu que Sean estava transtornado e partiu para defender o amigo.
Ficamos todos olhando aquela cena sem entender nada do que estava acontecendo. Sean saiu do veículo e puxou uma lona que cobria a parte de trás. Eram armas.
A princípio pensei que teríamos uma guerra de torcidas, mas quando vi que tanto os Catholics, quanto os Celtics começaram a pegar as armas juntos, aquilo era ainda mais sério.
- Os Dragões – gritou Ruslana, fazendo com que um tumulto tomasse conta da arquibancada.
Ela estava certa e, em cinco minutos, o estádio foi invadido por caminhões negros e carros blindados. Javier e outros jogadores abriram fogo contra os orientais, mas o poder de fogo era pequeno para rechaçar aquele ataque.
Os irlandeses estavam em número muito maior, mas devido às restrições do uso de armas no estádio, aquilo se tornou um massacre. Foi como caçar ovelhas presas em um cercado. Os Dragões abriram fogo contra a arquibancada, acertando milhares de torcedores impotentes frente ao ataque.
Ruslana me puxou pelo braço e conseguimos sair do estádio. Fomos até o lugar onde ela tinha deixado a moto. Lá ela pegou sua AK-47 e disse para eu atirar em quem estivesse na frente. Não era muito, mas era melhor do que uma funda feita com camiseta.
- Temos que achar Javier. Eles estão atrás dele – ela disse ofegante.
- Como assim?
- Ele não te explicou nada?
- Explicou o que, Ruslana?
- Não dá para contar a história agora. Vamos tentar resgatá-lo.
Subimos na moto e demos a volta no estádio. Encontramos alguns Dragões com suas Akira Bikes guardando a passagem para o estádio. Não adiantaria enfrentá-los, então voltamos para o centro da cidade para tentar nos organizar.
A situação era tensa, mas eu tive dificuldades de me concentrar sentado na garupa de Ruslana. Fiquei olhando para aquele pescoço, onde nasciam uns poucos fios de cabelo loiros e tive vontade de mordê-la com toda a minha força. Ela teve que berrar para eu voltar à realidade e acertar um oriental que estava apontando um rifle para nós.
O sol já estava baixando quando chegamos ao Rio Lee. A cidade estava ainda mais vazia que o de costume e quando atravessamos a ponte próxima à Casa de Ópera de Cork, Ruslana parou a moto, olhou à nossa volta e disse:
- Ezekiel, eu combinei com o espanhol que se não nos encontrássemos depois do jogo, o ponto de referência seria a Igreja Shandon. Se Javier conseguir sair vivo do estádio, e eu acho que ele consegue, vai nos encontrar. Se ele não conseguir, você me ajuda a chegar a Londres.
- Tudo bem, mas eu preciso saber o que está acontecendo.
Seguimos para o ponto de encontro e escondemos a moto dentro da igreja. Subimos a torre dos sinos, onde ela, ofegante, começou a me contar sua história:
- Eu tenho um frasco com um componente muito importante que precisa ser entregue para um grupo de cientistas em Londres o mais rápido possível. A viagem para Londres é muito perigosa e Javier vai me escoltar. Isso se ele sobreviver ao ataque. Esses coreanos que vocês chamam de Dragões estão atrás desse frasco para destruí-lo.
- E essa substância? É alguma vacina? Você disse para Javier que tinha a cura. Eu ouvi você falando isso quando chegou.
- Não Ezekiel, não é uma vacina. É uma bactéria altamente letal.
- Ahhh, e os cientistas precisam dela para desenvolverem uma vacina, certo? Só não entendo porque esses orientais querem impedir.
- Garoto, presta atenção. Nós vamos livrar o mundo do ser humano de uma vez por todas. A bactéria vai ser modificada para sobreviver na água. Nós vamos salvar o mundo. Nós vamos fazer o que a varíola não fez.
Minha cabeça explodiu. Eu ouvia as palavras, mas não queria acreditar que Javier e Ruslana eram os vilões daquela história.
- Espera. Acho que você está nervosa com a situação e pulou alguma parte, Ruslana.
- Droga, Ezekiel, pára e pensa. Você acha que está certo isso? O mundo estava um caos e daí um vírus acaba com noventa por cento da população mundial. Ainda assim a guerra não acabou, a violência continua a mesma, toda a podridão de antes permanece. Nós temos que acabar com isso de uma vez por todas.
- Eu olhei para os olhos de Ruslana e vi que ela estava falando sério. Apontei a AK-47 para ela e mandei ela parar.
- Você é louca? Olha o que você está falando!
Ruslana ficou paralisada. Para ela, tudo aquilo fazia muito sentido. Era evidente que a russa não tinha noção de quão insano era aquele plano.
- Não se mexe, porque eu vou atirar se você tentar alguma coisa. Eu vou esperar Javier e vamos desfazer esse mal entendido. Ele também não deve saber direito o que você pretende.
Ruslana levantou as mãos e pediu calma. Disse que não reagiria e que era uma boa idéia esperarmos pelo espanhol. Fiquei olhando para aquela mulher. Era a coisa mais linda que eu já havia visto e por isso mesmo era tão difícil acreditar na loucura que ela acabara de me contar.
- Americano, posso te perguntar uma coisa?
Eu fiz que sim com a cabeça, mas não soltei a arma ou deixei de apontá-la para ela.
- Você me acha bonita?
- É claro. Você é muito bonita. E igualmente louca. O barbeiro estava certo.
- Tudo bem, eu vi como você me olhava no estádio, como ficava próximo, esbarrando “sem querer” e senti sua respiração próxima à minha nuca, na motocicleta.
Droga! Bochechas rubras de vergonha! Eu fiquei extremamente constrangido com aquelas palavras. Eu me senti um animal sem controle. Um imoral. E o pior de tudo, ela sabia disso.
- Você conseguiu se controlar, mas em seus desejos mais íntimos, você queria rasgar minha roupa e me atacar. Não é isso?
- Não é bem assim…
- É assim, sim. Seja sincero, você me imaginou nua, Ezekiel?
Eu não disse uma palavra, mas meus olhos fugiram dos dela e ela teve a resposta imediatamente.
- Era assim que você me imaginava?
Eu levantei os olhos e vi que ela levantara a blusa do Cork City Football. Fechei os olhos imediatamente, tentei me concentrar, mas não consegui. Reabri os olhos e a admirei.
- Responda-me: era assim, Ezekiel?
Uma gota de suor escorreu em minha têmpora, mas graças a Deus, ela baixou a blusa e eu pude me restabelecer.
- Vê, Ezekiel? Foi difícil, mas você não me atacou. Você está com um rifle na mão e mesmo assim se controlou. Podia ter me agarrado à força, mas não o fez.
- O que você quer de mim?
- Quero que pense em todas as pessoas que você já conheceu. Tente contar quantas pessoas teriam conseguido se controlar. Qual dos seus amigos irlandeses não teria tentado me agarrar na garupa da moto? Quantos tomariam a decisão certa?
Pensei em algumas centenas de pessoas. Lembrei de meu pai, do vizinho que invadiu a minha casa, dos cowboys no navio, dos irlandeses de Youghal, os hooligans do Cork City e até em Javier. Ninguém!
- O mundo está perdido. A varíola varreu quase todos, mas os que sobraram não aproveitaram a chance. Podiam recomeçar de uma maneira diferente, mas preferiram continuar com a podridão.
- E a solução é matar a todos? Por que não deixar nas mão de Deus? Por que não tentar mudar o mundo? Isso é assassinato. Você está propondo um holocausto! Existem mais pessoas como eu. Pessoas que se controlam e respeitam os outros.
- Ezekiel, vamos esperar por Javier. Eu prometo que não vou mais te perturbar e nem tentarei te desarmar. Vamos apenas esperar, o espanhol.
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Revisão: Lucio Nunes
Fonte: Jovem Nerd
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