No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade
A estrada saía da planície e rasgava o monte, passando entre dois taludes pedregosos. Acabada de construir, ainda não fora aberta ao trânsito, aguardando a ocasião (política) adequada para a inauguração.
O homem seguia a pé pela estrada, assobiando na manhã luminosa. Era ele o engenheiro responsável pelos trabalhos de abertura da estrada. A razão principal para o desempenho dessa função prendia-se com o fato de, além de engenheiro civil, possuir uma especialização em consolidação de taludes. Este troço iria substituir uma estrada sinuosa e em mau estado, poupando quilômetros, tempo e dinheiro à população local e a quem quisesse atravessar a região. O homem sentia-se orgulhoso do trabalho feito, cumprindo normas, respeitando prazos, sem acidentes. Como estava bom tempo, tinha resolvido fazer a pé os 3 ou 4 quilômetros entre a pensão onde estava hospedado e o estaleiro.
A pedra estava no meio da estrada. Arredondada, não muito grande, o tamanho ideal para dar um pontapé. Foi exatamente o que o homem pensou. O seu andar ganhou uma nova intenção, chegou junto da pedra, o último passo foi um pouco mais curto, tomou balanço com o pé esquerdo...
— Alto!
A palavra soou incisiva, dura, como uma pancada de ferro em basalto. A surpresa, o choque, qualquer coisa naquela ordem fez o homem suspender o movimento iniciado. Olhou em redor e não viu ninguém. Embora a manhã estivesse quente, sentiu um arrepio.
Olhou novamente à volta, examinando com pormenor o topo das escarpas, de um e outro lado, onde poderia estar escondido o brincalhão.
— Aqui em baixo, à esquerda – era a mesma voz, mas menos dura, como ferramenta em calcário, mais friável, mais fácil.
O olhar do homem percorria agora a base do talude até que viu aquela pedra. Quer no tamanho, quer na forma, a semelhança com uma cabeça era inegável. Quando era estudante, na cadeira de Geotecnia, o professor tinha apresentado numa aula um conjunto de slides mostrando rochas com formas estranhas, muitas delas antropomórficas. Esta pedra, se não estava nessa coleção, deveria estar... Olhou a pedra com mais atenção.
— Sou eu que te falo – ressoou novamente a voz.
Pedras falantes? Devo estar doido – pensou o homem, e novamente a voz, agora suave, insinuante, como o raspar na argila macia:
— Não estás, não. Descontrai e deixa-me mostrar-te.
O sentimento de curiosidade sobrepôs-se ao receio e a mente do homem foi de súbito invadida por imagens, catadupas de imagens, de início um caleidoscópio onde era impossível distinguir qualquer nexo, mas pouco a pouco as imagens foram ganhando coerência, fazendo emergir padrões, e o homem começou a sentir a presença de uma inteligência diferente, inorgânica, sólida, a vida e a morte associadas aos lentos processos de cristalização e vitrificação, informação armazenada em redes cristalinas de elevada densidade, o pensamento materializado em correntes eléctricas através dos minerais condutores dispersos na matriz rochosa, controlando as tensões no interior do solo (surgiu aqui na mente do homem o conceito “sismo” mas a interrogação que se ia formar sobre as causas durou uma fração de segundo, logo submersa pelo caudal de imagens que continuavam a entrar), moldando a lenta percolação das águas subterrâneas, formando e transformando a crosta, com um horizonte temporal da ordem dos ciclos geológicos, espalhada por todo o planeta, uma inteligência antiga, que deve ter começado a ser quando o magma primevo começou a solidificar, uma inteligência não humana, totalmente alienígena, mineral...
Uma breve pausa no fluxo de imagens, o cérebro do homem a tentar consolidar toda a informação recebida, avaliar a dimensão do que tinha aprendido, e tem início uma nova sequência, que começa lenta, imagens de homens pré-históricos transportando pedras, a construção de Stonehenge, os megalitos funerários, depois os grandes monumentos da antiguidade, as pirâmides egípcias, os templos asiáticos e centro-americanos, as catedrais europeias, e subjacente às imagens uma tranquilidade, uma calma, uma sensação de respeito pela natureza, de harmonia entre o natural e o construído, a intervenção humana inscrita no mundo de forma equilibrada...
Nova pausa, seguida de outra avalanche de imagens, agora de grandes obras de engenharia: abertura de canais (o homem reconhece imagens do Panamá e do Suez), escavação de fundações dos grandes arranha-céus das principais metrópoles, enormes pedreiras esventrando montanhas, construção de túneis, abertura de estradas (a Transamazónica...), e grandes máquinas em funcionamento, torres de extração de petróleo, grandes tuneladoras, explosões de dinamite, rasgando, furando, rebentando, e associado às imagens um sentimento crescente de agressão, feridas e golpes, violação, destruição, e o ruído das máquinas também em crescendo, chegando ao limiar da dor, o homem leva as mãos aos ouvidos mas o ruído continua dentro da sua cabeça e quando parece que não vai conseguir suportá-lo pára subitamente, e o silêncio súbito é como uma pancada. E a mente do homem formula uma interrogação: Porquê? Porquê o contato? Porquê toda a informação?
Uma nova imagem projetada, num silêncio frio, pesado, e é o portal do cemitério da cidade onde o homem nasceu e passou a infância, nunca mais lá voltou mas reconhece as pedras musgosas e no topo, acompanhando a curva do arco, a frase que ele em criança, pronunciando sílaba a sílaba, achava fascinante: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris”.
A voz ressoa novamente na cabeça do homem, agora novamente com um timbre duro, definitivo, como a sentença de um julgamento:
— Para que saibas a razão do teu regresso ao pó.
O homem sentiu que o contato tinha terminado. Dentro da sua cabeça já só estavam os seus pensamentos. E quando se interrogava sobre o que tinha acontecido, um ruído surdo vindo de cima fê-lo levantar a cabeça.
Como num filme em câmara lenta, como num sonho, viu um enorme bloco rochoso desprender-se do topo do talude e começar a rolar, arrastando outros e mais outros e antes de ser esmagado pela avalanche de pedras o último pensamento do homem foi uma interrogação: Como pode isto acontecer, se o talude foi estabilizado?
No dia seguinte, uma equipe de operários, com maquinaria pesada, ocupava-se na limpeza da estrada. Que azar – comentavam – logo ter acontecido o tremor de terra quando o engenheiro ia a passar.
O motorista do caminhão fumava um cigarro enquanto o operador do bulldozer ia levantando pedras que despejava na caixa de carga, onde caíam com um ruído metálico, surdo.
Enquanto esperava, olhava distraidamente à sua volta e subitamente viu a pedra. Aproximou-se, levantou-a do chão e foi mostrá-la ao colega que tinha parado a máquina e descia da cabina.
— Já viste esta pedra? Parece mesmo uma cabeça. Vou levá-la. Estive a fazer um tanque no quintal da minha casa, vai ficar porreira em cima do muro...
Nota: De acordo com o autor, palavras no texto original, em termos ortográficos da Língua Portuguesa do outro lado do Atlântico, foram adaptadas para o Português escrito no Brasil.
Escrito por João Ventura
Blog do Autor:
“Das palavras o espaço”
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