16 novembro, 2010

QUANDO A FLORESTA NÃO DORME


Escrito por Albarus Andreos

Dentre as sombras da floresta de Nuvermolls assomam as maiores árvores de que já se ouviu falar. Há sempre o rumor do vento e as vozes dos entes do mundo inanimado parecem se misturar aos murmúrios dos pequenos animais e aos pios dos pássaros. Há o vento que traz as mensagens do povo Elemental e os pingos das chuvas são carregados  de imagens de outras paragens. A neve cai mais suavemente, mais devagar nesta floresta. Sabe-se que nos bosques que a circundam, o chão é muito menos maculado pelos passos dos seres de duas pernas. Os grandes olmos formam espessos tapetes amarelados no outono, e os carvalhos estalam quando as lebres começam a se esconder e mais dos lobos já antevêem a chegada do inverno. É nessa época que a fome se abate nas alcatéias dos hiurglans, como o povo de belo rosto os conhece.
A dor no flanco é muito forte. Duas ou três costelas quebradas e as botas não pisam as folhas com a mesma leveza de sempre. Ele troca a aljava quase vazia de um ombro para outro mais uma vez e respira como dá. Tenta inflar o peito com o ar seco mais fresco, mas este se recusa a entrar, e seus pulmões gritam e sua garganta já parece ressecada pelo esforço. Ele passa uma mão pelo lado esquerdo da túnica que parece quente, mas é a pele que está febril e inchada. Desequilibra-se, segura-se num tronco fino de bétula só para poder deixar-se cair com mais suavidade. As pernas lhe faltam, mas há muito ainda a percorrer até Foreinl. O braço esquerdo parece amortecido e a dor já lhe sobe pela nuca. Uma nova dor já se alastra pelas costas, indo até o couro cabeludo amortecendo-lhe os nervos da base das costas e fazendo sua cabeça parecer coberta por uma touca de gelo, como se o crânio pudesse se mover por baixo de uma pele solta. Mas é só na dor que não deve pensar, senão não haverá esperanças.
Recosta então a cabeça num tronco enquanto desce a aljava ao lado de uma raiz alta, nodosa como a cara enrugada de um ente, como um grande nariz bulboso cheio de rugas. Só então vislumbra o telhado coberto de turfa no final da ravina. Seus olhos se estreitam. Parecem cobertos por uma névoa aquosa que lhe turva a visada, como se olhasse para uma paisagem no fundo de um lago onde se derramara um jarro de leite. É a dor! É o aspecto que o mundo toma quando os sentidos se confundem e pela mente começam a passar imagens irreais que não se pode mais distinguir do vento, do cheiro e da luz real.
Uma cabana simples...
É uma morada de humanos.
Ele abre a sacola presa ao cinto e retira um pequeno saco de saidrin. Há pouco ali que possa mascar para aliviar a aflição. Decide guardar para quando não puder mais suportá-la, embora já não consiga saber se ainda vai estar lúcido para discernir a fronteira entre estes momentos. Só sabe que a dor ainda vai apertar. Não fora a primeira vez que recebera um ferimento em batalha, mas talvez nunca tivesse sido tão grave. Certamente doera antes e sabe que será muito pior desta vez. Talvez se mascar só uma pequena raiz... Não! Deve deixar para depois.
Água. Ainda tem alguns goles de água chocalhando dentro do cantil, um resto que persistia desde que deixara às proximidades do rio. Mas já é pouco. Ele encosta o cantil ao ouvido e por um momento conforta-se escutando a voz do Astaern, cujas águas secretas provém das profundas gretas onde os espíritos das pedras são antigos como o mundo e a Senhora das Águas chama o belo povo pelo nome que os Antigos lhes deram no passado.
Seus lábios então se encostam na boca do odre, bebem um pequeno gole e seu peito agradece. Há dois dias não come. Não há mais pão, nem castanhas. Precisa a todo custo ainda acreditar que há esperanças! “Fadas! Oh, fadas, filhas de Qwanda, onde estão?”
Ele se levanta. Esta ofegando de novo. Não sente gosto de sangue na garganta. Disseram-lhe que quando isto acontece não há mais esperanças. Então ainda há! Cada inspiração é um tormento, contudo. Talvez os ossos quebrados tenham perfurado um pulmão. Se assim for, morrerá sem dúvida. Não... Não há gosto de sangue, não há! Deve ainda ter esperanças, não é?
A casa. Uma voz lhe diz... É a voz que sempre lhe diz no ouvido, como um sussurro melodioso, que deve ter esperanças. São as fadas, de volta, imagina. Por que não lhe dão mais de comer? Seu coração está triste. Não deve se permitir ficar assim tão abatido, não deve!
Levanta-se. Caminha dois passos cautelosos esforçando-se para voltar a pisar o ar, tornando-se tão silencioso como o lince, irmanando-se às sombras, mas isso é tão difícil agora. A cabana de lenhador é pequena e frágil, mas bem calafetada contra o frio. Possui uma chaminé, mas dela não vem qualquer sinal de fogo recente, o que é muito estranho para os homens, que usam o fogo para cozinhar a carne de animais. A sua forma de agir, de misturar o mundo ao seu corpo. Não tem o direito de sentir asco disso. Não deve. Não sente...
A idéia parece indecorosa demais, mas até mesmo seu povo se alimenta de carne quando necessário. Quando os animais a dão a eles, por saberem que precisam dela. Sacrificam-se perante a sua amada mãe das matas e ela lhes oferece de bom grado o sacrifício de seus filhos e estes não se importam. Ela deixa que os seus se sacrifiquem para que o belo povo viva, e a idéia é tocante demais para que lágrimas não venham aos olhos. Mas não agora... Não é ocasião para alcançar toda a imensidão do ato das fadas, neste pequeno universo.
Uma coruja pia. “Alerte-se!”, ela diz. Nota então que não está numa posição boa para sentir os cheiros. Resolve contornar a crista coberta de folhas e deixa o arco junto da aljava, escondido dentro de um tronco de sabugueiro rachado por um raio. Caminha curvado para frente, sem tirar os olhos de baixo, na depressão da colina; os ouvidos ouvem também o lado do rio, de onde veio. É de lá que teme inimigos terríveis. É para lá que tem que voltar, se quiser retornar para casa, para alertar o belo povo da chegada dos ogros cinzentos. Felmath cruzara enfim o limiar das rochas do Eglaez. Talvez já estivesse entediado de manter as tripas dentro do ventre pálido. Quando os ogros parecem perder a cautela é porque não prezavam mais viver.
A cabana. Sim, ele sente cheiros e se pergunta se não há mais pessoas vivas lá dentro, pois fareja sangue no ar. Se havia pessoas, elas já devem ter esfriado pois o sangue não é fresco, mas não tem absoluta certeza. Não está acostumado com o cheiro dos humanos. O sangue... Já está estagnando e as moscas voejam e certamente já cobrem o chão daquele lugar. Os vermes delas comerão tudo. Devorarão a carne dos cadáveres. É a vez dos homens darem de volta a carne de que se alimentam à natureza.
Deve haver comida lá dentro.  Talvez algumas raízes que possa consumir para amenizar seu próprio mal. “Há sálvias no campo próximo” diz a voz do vento oeste. “Venha ver quão belas elas são” convida o vento. “Não, Ser Elemental! Não posso agora. Tenho que cuidar de um assunto primeiro, mas obrigado!” responde ele ao vento. “Há romãs maduras no sul. Venha então para se alimentar e descansar.” convida de novo. “Sei o que quer fazer, Ser Elemental, mas não se preocupe. Não vou me descuidar”. “Então cuidado, belo ser”. “Vou me cuidar, Elemental do Ar”.
Romãs! A esse pensamento seu estômago ronca alto. Se os ogros passaram por aqui é provável que tenham se alimentado da carne dos habitantes da cabana. Deveria se arriscar? Ele passa a mão na adaga longa que traz no cinto e a presença dela o conforta. Fora seu pai quem entalhara o cabo de nogueira e o feiticeiro quem gravara runas de estrelas na lâmina, dando-lhe poder.
Deu então mais alguns passos em direção a morada dos filhos de homens, e as borboletas azuis debaixo de um caramanchão de primaveras voejam para longe pousando num cabo de uma ferramenta de arar a terra. Além dos arados há enxadas, enxós e rastelos. Só então ele vê a lavoura adiante, verdejante e bem cuidada. Não é trabalho para poucos humanos. Uma família grande certamente. Seis ou sete adultos, deduz, e abre os ouvidos para ouvir o bater das asas das borboletas mas elas não lhe revelam mais nada.
Fome.
Já experimentou uma vez o pão dos homens e não é ruim. E eles também se alimentam de raízes e castanhas. Alguns cultivam a terra e é só por isso que muitas famílias dos homens começaram a ficar e lutar pelo lugar onde habitam. As lavouras os fizeram perenes, ao contrário de quando apenas caçavam o que comiam, o que os levava a migrar sempre que a caça escasseava, quando o inverno os expulsava com açoites de gelo nos lombos cobertos de pêlos. Mas isso já passou há muito tempo. A cabana o levava a acreditar que os humanos começaram a se aproximar demais das terras do belo povo. Estão agora a, talvez, doze ou treze dias de caminhada das fronteiras. Certamente ainda não sabem disso, mas estão perto demais... Logo saberão.
Os humanos, ao adentrar terras perigosas, tinham o costume de lutar pouco. A perda de alguns dos seus os fazia recuar apavorados e ir embora para outras pradarias e campos. Bastava ver um gamo e seus estômagos os faziam esquecer de tudo que haviam deixado, contudo. Foi uma época de fome e ao olharem uma criancinha esquelética se condoíam e tornavam-se fortes para continuar procurando e procurando por mais comida, sempre e sempre. E isso os fez desenvolver um cérebro poderoso, formado essencialmente pelo tutano de ossos de bichos, e sua espinha foi ficando cada vez mais ereta, para que pudessem olhar mais alto, por cima do capim alto. O cérebro maior os fez raciocinar melhor, pois deviam calcular melhor o rumo das manadas, a direção do vento para poderem melhor lançar as setas; providenciar tocas mais quentes e elaborar armadilhas para direcionar os maiores mamutes para os pontos certos de abate. Tornaram-se muito espertos! Quando começaram a fabricar ferramentas adquiriram a prática de armas melhores. Dizem que foram os roags que um dia lhes ensinaram a forjar o aço. Quem sabe?
Com as lavouras, eles começaram a ficar mais teimosos, e ao descobrirem como empunhar machados de guerra... Ah!, os perigos passaram a não ser tão temíveis. Por isso vieram a avançar onde não deveriam ser bem-vindos. Vendo por este ângulo é bom que os perigos por aqui sejam tantos. Não gostaria de ter filhos de homens empunhando machados e lanças contra ele.
Resolveu descer a ravina. Tomando todo o cuidado que pode. Nunca se expusera tanto antes. Um ilarin deve ter as sombras como irmãs, a tarde caía e elas o acompanham sorrateiras. “Romãs!” “Não voz! Não posso agora!” “Cuidado!”.
As tábuas estão bem firmes. O telhado bem feito deve oferecer proteção contra a chuva, talvez já tenha pensado nisso antes, nos poucos instantes desde que vira a cabana pela primeira vez, mas não consegue se lembrar direito. “Enquanto estiver junto a humanos não poderá ouvir a voz dos elementos! É a lei. Já aprenderam magia antes e isso não lhes podia ter sido ensinado. Precisa ter cuidado para não lhes ensinar, por um descuido, a escutar os elementos”.
A voz acaba de dizer que há homens vivos na cabana. Caminha devagar e instintivamente retira a adaga da bainha. A prata de Ishbarr rebrilha sua luz na escuridão onde a lua não está. Ishbarr matará se o dono assim lhe ordenar e pouco importa se ainda não há lua no céu. Se vai roubar comida, deve parecer um ladrão.
De perto já que a porta está escancarada. As janelas arrombadas. Moscas... E o fedor.  Algo não está certo! Na verdade, se fossem ogros, tudo estaria em escombros, sob carvões já mornos. Apóia-se num pilar de madeira toscamente aparelhada. Respirar... Precisa respirar, mas a fedentina... A dor dobra-lhe o corpo de novo. Então pensa que com alguma comida poderá recobrar forças. Talvez possa dormir por uma noite para caminhar por mais um dia.
Seu corpo enfim toma a frente da porta e o chão está escuro, coberto por sangue. Nem que aquelas tábuas fossem lixadas por um bom mestre marceneiro seria possível retirar todo aquele sangue que deixou uma camada grossa e melada. As varejeiras... Ao primeiro passo naquele assoalho maculado, o som de suas botas ecoa no pequeno aposento, e  ouve o som de metal.
Não tem como se atirar porta afora. Abaixa-se surpreso pelo brilho de uma espada, mas ela está próxima ao chão. A dor precisa ser esquecida num instante em que põe-se preparado para o combate. Mas ele não vem. Como deve estar doente para não ter percebido antes, surpreende-se!

Aquele que estava caído no chão esforça-se por manter os olhos abertos e então fica de pé, e o que vê é a silhueta metida em uma capa negra defronte aos últimos raios de sol. Ele tem uma cabeça coberta por um capuz escuro, e longos fios dourados descem defronte ao seu peito.
– Um... elfo!

A voz que vem da boca do humano é áspera. Ele parece tê-lo identificado como sendo do belo povo e usa a palavra que eles escolheram para denominar os que vieram antes deles. Seu rosto é coberto de pêlos em profusão. Usam roupas tecidas e não só peles dos animais que devoram, para se proteger do frio. Ele ainda diz outras coisas, mas o elfo não entende o resto de sua fala. Sabe por seus olhos que o humano nunca vira uma pessoa como ele na vida. Os homens não têm boa visão e nunca se aproximam de elfos com a mesma suavidade com que os elfos espreitam os caminhos da floresta.
Então o homem se levanta. Empunha sua espada com dificuldade. Parte do sangue que está no chão deve ser dele, pois a perna esquerda se arrasta, e seu pescoço está arranhado profundamente. É grande e tem ombros largos. Seus braços são como troncos e seus punhos parecem martelos de guerra. Mas a espada parece pesar demais para ser sustentada. Ele cai pesadamente e fica inerte. Parece estar inconsciente, agora.
O elfo guarda a faca. Ela estaria atravessada na garganta do humano em menos tempo que ele poderia dizer seu estranho nome, por mais curto que fosse. Por um momento estica os olhos para o que resta da mobília pobre e dos sacos que deveriam guardar alimento. Há grãos misturados ao sangue no chão, mas não se pode agora comê-los. Houve luta. Há água num pote de barro, mas o elfo, ao chegar perto sente o estômago embrulhar. Os humanos guardam a água por vários dias e os elfos gostam da água livre dos rios. Quanto mais tempo ela permanece guardada mais intragável fica. Há uma caneca e ele bebe a água mesmo assim, tentando economizar o pouca que ainda lhe restava no odre. Ela cai como se fosse lama por sua garganta mas ainda é água.
Ele se deixa escorregar de novo até o chão enquanto olha o grande humano debruçado sobre sua espada. Ele olha as panelas. Utensílios demais para um homem só, como já havia adivinhado. E há vassouras. Há um vaso caído com algumas flores murchas saindo de sua boca lascada. Era um lar feliz. Havia uma fêmea ali. E detrás de um cesto revirado e parcialmente destruído, uma bonequinha de palha de rosto pintado de carvão. Havia uma criança; uma menininha, e parte de seu vestido pode ser visto preso nas bordas de uma janela e há sangue nele, como em tudo mais. Algo morto está prostrado junto da lenha de um fogão de barro rústico. O que está ali não era para ser comido, ao contrário, certamente era um dos que vieram para devorar. O elfo se senta vendo o pêlo avermelhado. Novamente posiciona a mão no flanco. Um uivo, o primeiro da noite ecoa na floresta lá fora.
O que matou a família daquele homem não foi um bando de ogros. Foram lobos!
O homem se vira no chão. Ele está vivo, mas só por pouco que não se juntou à sina de sua esposa, filhos e filha. Talvez não seja um bom humano, senão seus deuses o deixariam morrer junto com os que amava. Ele está ali, parado. O elfo o vê sobre a borda de sua bota enquanto uma mosca senta no bico. Ele abre de novo sua bolsa. Retira raízes de orsidalle de dentro dela. Arranja um vasilha caída e despeja um pouco da água com gosto de barro que eles tomam. Esmaga as raízes com o cabo da adaga enquanto, enfim, mastiga o saidrin. O gosto é tão amargo que espanta a dor. Pede para a mãe Qwanda, dos elemetais, libertar os efeitos da mistura. Aliviará a dor dele e a do humano também.
Chega então próximo ao homem caído, que respira com força. Ali dentro bate um coração que quer viver e ele tenta entender porquê. Humanos tem vidas curtas e apegam-se a ela com uma energia que elfo nenhum entenderia. Eles são chamas breves, mas que queimam com intensidade. Por isso resolve postergar um instante a mais que seja sua missão. E os olhos dele estão abertos. O elfo se assusta. Ele está ali, deitado. A mão na espada, mas ela não se move. Ele olha o teto, mas não enxerga as traves baixas cobertas por turfa. Olha com olhos penetrantes, com olhos de morte.

Talvez um elfo também não entenda o efeito que o ódio exerce no coração de um humano, criaturas bizarras, mas ele vê que a vingança está dentro do corpo alquebrado daquele lavrador. Ele vê que ele morrerá com mais honra se puder menear sua espada uma última vez.  Por isso lhe ministra o ungüento na ferida do pescoço. A pomada limpará o ferimento, diminuirá muito da dor, e cicatrizará a carne dilacerada em pouco tempo. Só não reporá o sangue que ele perdeu, nem retirará a bola de espinhos que ele tem dentro do peito. Ela permanecerá lá enquanto se lembrar da perda de sua família. Enquanto se lembrar do gosto de um beijo amoroso e do som de risinhos agudos.
O toque do elfo é, por alguma razão, reconfortante para o homem. Não há medo em seus olhos que não piscam nunca. O elfo canta aos elementos e imagina se ele teme fechar as pálpebras e perder a última imagem que teima por mantê-lo vivo. Uma imagem que talvez incluísse amor, risinhos e mãozinhas fofas.
Então, um som do lado do beliche de madeira tosca. Um rapazote que parece assustado demais para ser perigoso. Estivera escondido até aquele momento. Bom trabalho!
O elfo se levanta e põe os sentidos em alerta. Mas não há mais ninguém.  O homem quase morto parece pedir calma ao outro, mais novo. Ele parece querer protegê-lo. Como um pai protege um filhote que treme segurando um machado de lenhador. Seus olhos são confusos. Não parece que as grotescas imagens que viram possam deixar de se repetir diante deles até o fim de seus dias. Devem ter visto mortes demais. Mortes muito doloridas para manter a sanidade dentro dos miolos.
E é olhando aquele grande humano prostrado no chão que o elfo observa, por um longo momento, a brevidade da existência e a vontade de persistir, quando ouve que muitos outros uivos se juntam no entardecer para combinarem onde achar mais comida naquela noite de outono dentre as árvores de Nuvermolls.
Ele deixa a cabana, sobe a colina e procura na vegetação o arco e as flechas. Acha o tronco rachado com facilidade. Há na aljava um flecha especial, feita com pedra da lua, a prata-aço com que foi forjada Ishabarr. A flecha mata bruxas e demônios controlados por elas. Serve também contra outras coisas, e assim que se volta de novo para a cabana, vê um grande vulto peludo se aproximando da porta. Eles caminham em duas patas quando estão próximos da entrada. São enormes como ogros e, para um elfo, isso só significa que são alvos fáceis. Sim, a prata serve bem contra eles. Mas guarda a flecha na aljava. Não vê ainda necessidade de usá-la. Não é para os que já não tem salvação.
O elfo pensa se não deveria permitir que os lobos fizessem sua refeição. Afinal os homens estão perto demais. Perto demais das fronteiras de Foreinl! A faxina que fariam substituiria o bom-senso que os homens não tiveram de ir embora, de se manter longe, como deveriam fazer... Não!

E o grito que veio descendo a colina, veio com pontas afiadas da madeira reta do freixo, refletindo a decisão do elfo. Manter-se alheio àquela matança não era uma opção hoje. E o sibilar das penas brancas traçaram uma ponte firme entre o sentimento de justiça dos elfos e o desejo de vingança dos homens, e algo falava a língua dos seres escuros e suas bocas tinham dentes aguçados do tamanho de dedos. E as flechas penetraram o corpo coberto de pêlos espessos e os passos levaram o ilarin a estraçalhar três grandes peitos com a potência dos impactos das flechas élficas. E três grandes lobos caíram mortos tão rapidamente que só então houve alguma reação. E a escuridão não era mais inimiga dos homens quanto era dos elfos, e o sangue quente da floresta borbulhou no coração do ilarin enquanto atirava o arco de lado, quando os saltos dos lobisomens já os haviam trazido próximos demais para retesar a corda do arco.
O aço élfico de Ishbarr cortou uma cabeça enquanto mandíbulas agarravam seu braço, do lado machucado, e a dor fez com que as mãos do belo ser soltassem a faca. Ele foi atirado de encontro ao alpendre da cabana, e ali permaneceu até que um grande corpo peludo cobriu-lhe os olhos, garras segurando-lhe os braços, e o urro veio-lhe aos ouvidos num lancinante triturar de ossos. O lobo foi lançado para trás, e em seu peito havia uma espada, e o braço que agarrava seu cabo ainda tentou retirar o aço cravado no velo grosso do animal morto.
Um outro urro em meio a dentes escancarados voltou a subir do lado direito de suas orelhas, mas o elfo se levantou e achou um jovem segurado um machado de lenhador que cortou então uma perna de lobo de alguns dos que ainda não haviam percebido que o jantar de hoje ainda não estava posto. O machado voltou a comer o ar triturando um crânio que agonizava sobre a pequena escada de madeira que levava ao interior da moradia. Antes que o último atacante conseguisse dar o segundo salto da fuga que pretendia empreender, o machado foi atirado por um braço de homem com a maestria dos ilarins, cravando em suas costas curvadas de vértebras saltadas.
Silêncio.
O elfo viu que aquele que pretendia proteger tinha então se juntado à sua pequena família, finalmente. O grande homem, de rosto peludo.
Já era noite em Nuvermolls. O elfo achou que não poderia dormir ali. Com as sombras poderia se esgueirar pela margem do rio e passar pelos vigias dos ogros que ainda deveriam ter permanecido procurando alguma pobre vítima.
  — Obrigado. – disse o jovem humano.
O elfo não respondeu e olhou para o homem velho. Ele agora tinha o peito aberto. Havia vértebras salientes com suas pontas brancas saindo para fora de sua túnica esfarrapada. E a luz parecia estar fazendo o rapaz crescer. Ele fora vítima do ataque anterior dos lobisomens e agora a lua redonda o banhava pela primeira vez, fazendo germinar o feitiço antigo dos homens-lobos. Se os outros integrantes da família humana tinham servido de alimento para os lobisomens, não parecia que eles tinham vindo aqui, nesta noite, para se alimentar, afinal. Tinham vinda para dar boas-vindas!
O humano caiu de joelhos e ele implorava algo que o elfo não precisava compreender através de sua língua para saber o significado.
— Não posso ajudá-lo dessa vez humano. Seu ferimento é grave demais. Poderá ver sua família em breve.
“Sim. A verei em breve.” – talvez o humano tenha dito.
 “Qual é... seu nome, elfo?” a voz perguntou.
— Sou Gelfor*.
“A noite está boa.” E os pêlos já começavam a crescer pelo corpo do rapaz, que se recurvava em lancinantes dores, que se alongava sob o feitiço da lua.
— Sim, há uma grande lua lá em cima, e o cheiro do rio diz que logo vai haver chuva.
“A chuva é boa em Nuvermolls”.
— Sim. É boa.
“E a floresta não dorme”...
O homem não terminou o que dizia. Já não era mais um homem. Gelfor afrouxou a flecha de ponta de prata do cordame do arco. O antigo espírito do hiurglan era quem agora comandava a fera. “Sua família agora está lá. Eles correm na matilha, pelos caules grossos”. O lobisomem o olhou com olhos amarelos recém abertos para àquele mundo. E farejando o ar uivou ara seu novo povo, que respondeu ao longe, para além do rio, depois das colinas onde os ogros agora deveriam estar tendo problemas nesta noite. O lobo de pêlos negros saltou e desapareceu dali para juntar-se à alcatéia. Perderam muitos, mas ganharam um.
O elfo observou o vapor quente que emanava das feridas do cadáver do velho humano, por um tempo. Depois cavou um buraco e o enterrou, conforme o costume dos homens.
Eram tempos em que os espíritos estavam acordados como há muito não estiveram. Havia coisas ocultas aguardando sempre, em algum lugar esperando o tempo lhes dizer que já chegara o dia. Mas em cada árvore dormia uma amadríade que orava pelos seres de luz, e os elfos eram os guardiães desta luz. Ainda eram, pelo menos, mas talvez chegasse um dia em que outros tomariam esta tarefa para si. Até lá, a floresta não poderia dormir, e ogros ou os homens deveriam ser mantidos longe.
  


Gelfor é um dos personagens que acompanha Karizem dos Bittur (o guerreiro conhecido como Dentes-de-Sabre), na jornada que farão para desvendar a Fome de Íbus (o livro. Giz Editorial, 2009). Karizem encontra este elfo num acampamento de ciganos, aprisionado e colocado numa arena para se digladiar com um goblin. Há uma pequena alusão do evento narrado neste conto, no livro, algo que o Albarus  Andreos resolveu escrever aqui como texto independente.

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