1000 Olhos é um conto seriado de Fernando “Tucano” Russell, publicado mensalmente no Jovem Nerd. Perdeu o início? Confira aqui!
INVASOR SORRATEIRO
Depois de sete horas ininterruptas treinando as majestosas aves do rei, Draszen pode finalmente seguir para o palácio para encontrar Izbaza. Para todos os efeitos, ele e a aia da rainha tinham reatado o noivado. No entanto, o relacionamento era apenas um embuste para deixá-lo mais próximo dos colóquios palacianos.
Como de costume, Draszen apareceu na ala dos servos e beijou a testa de Izbaza. De cima da mais alta torre, a Rainha Smiliana observava o casal, satisfeita por ver sua aia predileta novamente junto ao falcoeiro.
Os dois conversaram por algum tempo sobre assuntos fúteis e ao cair da noite, passaram a arquitetar a entrada de Draszen no palácio. Inicialmente, o falcoeiro pensou em se esconder no dormitório de Izbaza, pois se fosse pego, todos pensariam que se tratava de uma invasão puramente lasciva de um noivo apaixonado e cheio de volúpia. Mas o plano foi logo abandonado, quando a jovem contou sobre a crise conjugal do casal real.
- Fazem semanas que a rainha dorme com todas as suas aias em volta da cama. O rei está dormindo em um aposento separado. Minha senhora mal fala com o esposo, desde que ele começou a extrapolar sua paixão por pássaros.
- Mas ele sempre foi louco pelos falcões. Ele até mudou o emblema do reino - retrucou Draszen.
- Sim, mas agora ele passa os dias e as noites lendo sobre pássaros fantásticos de outros continentes. Diz também que organizará uma expedição para trazer aves de caça orientais. Há dias em que o rei se esquece até de se alimentar. E a rainha, embora estivesse preocupada no início e tentasse ajudá-lo, não suporta mais esse comportamento doentio.
- Agora que você está me contando, me recordo de ter ouvido uma ou duas histórias na taberna. Mas pensei que eram puramente escárnio dos soldados. Não tinha conhecimento desses acontecimentos – disse o falcoeiro baixando os olhos desolado.
- Fique calmo - disse a aia, retomando ao estratagema – descobri uma passagem subterrânea, que não sei para que serve, ou por quem é usada, mas é quase perfeita. Ela vai do bosque até um escritório bem próximo ao templo de Nrude.
- Fiquei observando algum tempo e não vi ninguém se aproximar. Minha única dúvida é se você consegue passar, pois o caminho é estreito e você muito largo.
Draszen deu um largo sorriso imaginando se aquilo era ou não um elogio e respondeu baixinho:
- Vamos ver essa passagem, então.
Os dois se certificaram de que a rainha não os observava mais e que nenhum soldado estivesse atento e seguiram para o bosque do palácio. Apesar da cautela, o bosque era um lugar em que um casal não levantaria suspeitas. Não era raro que soldados levassem aias palacianas para o meio das árvores para saciar seus desejos carnais.
Izbaza tomou a frente para guiar o cúmplice e em meio a arbustos e pedras, desvendou a entrada da passagem subterrânea. Draszen examinou o buraco e reconheceu que a passagem era estreita demais.
- Você já seguiu esse caminho?
- Sim, há duas noites eu me esgueirei por ele para saber exatamente onde ia dar – revelou a jovem.
- E a passagem se estreita ainda mais, ou continua nessa largura?
- Se estende por todo caminho, mas a saída é mais apertada um pouco. O que você acha?
- Talvez, se você conseguir um pouco de azeite de peixe da cozinha, eu passe mais fácil. O buraco é realmente bem estreito.
A jovem fez que sim com a cabeça e correu em direção ao palácio, para buscar o óleo. Draszen se refugiou próximo a um grande salgueiro e esperou o retorno da jovem.
Alguns minutos depois, o guerreiro estava sem camisa com o corpo besuntado com o azeite de peixe. O odor era forte e a sensação estranha, mas o sacrifício, necessário. Com o tórax brilhando à parca luz das estrelas, o falcoeiro se arrastou pela passagem.
Como Izbaza havia detalhado, o pequeno túnel se mantinha com as mesmas dimensões durante todo seu percurso. Como um verme, Draszen se moveu durante muito tempo até chegar a um ponto onde uma portinhola de madeira impedia a passagem.
Por alguns instantes ele se apavorou e duvidou de sua cúmplice. Seria uma armadilha de Izbaza? – pensou. Por que outro motivo ela não diria nada sobre aquele obstáculo? Como poderia voltar daquele ponto?
Um surto claustrofóbico fez seu coração acelerar e sua respiração ficou difícil. Mas, colocando os pensamentos em ordem, Draszen se acalmou e tentou ouvir os possíveis sons por de traz da porta. Nada. O falcoeiro não ouviu nenhuma voz ou ruído e resolveu forçar a passagem.
Mesmo sendo um homem forte, Draszen não teve sucesso empurrando a portinhola e mais uma vez o desespero se aproximou. Com o movimento dos braços limitados pelas paredes da passagem, o guerreiro não podia fazer muita coisa. Decidiu então tatear a portinhola e descobriu uma tranca.
O alívio chegou quando ele puxou a tranca para o lado e a porta se abriu suavemente. Apesar disso, Draszen não conseguiu ver o que estava a sua frente, pois nenhuma vela ou lamparina estava acesa. Menos mal, pois isso também indicava que não havia ninguém por ali.
Com um esforço violento, Draszen conseguiu passar pela passagem que ficava no alto de uma parede. Pensou como fora providencial o azeite de peixe no corpo e de como seria triste seu fim, caso não estivesse tão escorregadio. O falcoeiro agradeceu a Nrude e passou a tatear as paredes para descobrir um caminho para fora do cômodo.
Tropeçou em um baú e derrubou algo que nem imaginava o que fosse. Temeu ser descoberto por causa do barulho que estava fazendo, mas não tinha escolha. Amaldiçoou a situação. Encostou-se em uma parede, recuperando a calma e arrastou as costas até encontrar uma porta. Esperou alguns minutos com o ouvido encostado nela, para saber se tinha alguém do outro lado.
O silêncio era total, mas ainda assim, poderia haver um sentinela no corredor, que nesse caso, não faria barulho.
Mesmo sem ter toda certeza, abriu sorrateiramente a porta.
O guerreiro levou a mão à cintura, procurando encontrar o pomo de sua espada, mas lembrou que não a levara. Olhou pela fresta da porta e viu o corredor iluminado por tochas, mas nenhum guarda ou servo.
Passou tacitamente pela porta e seguiu pelo corredor. A tapeçaria pendurada nas paredes o fez lembrar do lugar. Certamente estivera ali algumas vezes, quando acompanhara a realeza ao templo de Nrude. Resgatou da memória o caminho e com mais alguns passos estava de frente para a porta dupla do templo.
Era uma porta soberana, talhada em carvalho polido e com adornos prateados. Era uma entrada majestosa para o salão de mármore branco onde os nobres devotavam sua fé ao deus Nrude.
Mais uma vez, o guerreiro esperou para ouvir os sons que poderiam vir por de traz da porta. No entanto, aquela era uma porta mais espessa, feita com madeira maciça, o que dificultava sua investigação.
Sem outra alternativa, resolveu abrir a porta com cuidado. Com uma pequena fresta aberta, observou todo o campo de visão que lhe era permitido. Viu as colunas brancas que sustentavam o teto decorado e enxergou os acentos do lado esquerdo junto às estátuas de gesso… Mas ainda não era o bastante.
Abriu mais um pouco a fresta e imediatamente entrou em pânico. Vira Goran próximo ao altar, com sua espada na mão. O mais ligeiro possível, fechou a porta e deu meia volta. Era muito azar, pensou pessimista.
- Onde estou com a cabeça? Questionou em um murmúrio lamentoso.
Correu de volta para o aposento, corroído pela incerteza de ter sido visto pelo chefe da guarda. Os pensamentos estavam embaralhados, mas decidira acreditar que o rival não poderia tê-lo percebido.
- Ele estava de costa, eu acho – disse baixinho. Eu fui bem rápido, ele não me viu – repetiu algumas vezes, tentando se convencer.
Engoliu em seco e em só movimento arrancou uma tocha do corredor, voltando ao recinto de onde havia saído há pouco. Vislumbrou pela primeira vez ao escritório que Izbaza descrevera, horas antes. Empurrou o baú para perto da portinhola de madeira de onde saíra para facilitar sua saída e resolveu voltar ao bosque.
Draszen chegou a subir no baú, mas quando se preparava para se esgueirar pelo buraco, lhe ocorreu que aquele aposento deveria ser importante, ou a passagem não terminaria ali. Decidiu então explorar o recinto.
Usando a tocha, acendeu um castiçal que estava em cima de uma escrivaninha e passou a procurar por alguma pista. Viu inúmeros livros, mas não pôde saber do que tratavam, pois não sabia ler. Encontrou alguns pergaminhos com gravuras que pareciam importantes e imaginou que aquele seria um escritório de um erudito.
Notou gavetas em uma cômoda e achou mais papeis antigos e um deles lhe chamou a atenção. Era uma gravura colorida de um pássaro exuberante que trazia em cada pena de sua calda e asas um olho vermelho.
Dobrou esse pergaminho e guardou-o dentro das calças. Afobado, o falcoeiro continuou vasculhando as gavetas da cômoda e achou uma chave de ferro. Instintivamente, sentiu que a fechadura daquela chave estava ali e começou a revirar o cômodo de cima a baixo.
Quis abandonar a busca ao ouvir passos do lado de fora, mas o silêncio retornou e ele continuou sua busca até encontrar uma nova portinhola escondida atrás da cômoda.
Olhou a sua volta e viu o estrago que havia perpetrado. Tudo estava fora do lugar e não sabia quanto tempo havia ficado dentro do palácio. Repentinamente, aproximou-se resoluto da portinhola. A chave, recém encontrada, foi colocada na fechadura e girando-a duas vezes, destrancou a pequena passagem.
Draszen entrou pelo acesso e teve a certeza de que aquela era a maior loucura de sua vida.
História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
Fonte: JovemNerd
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