Escrito por Gustavo Aquino dos Santos
“Cuidado com as sombras que vivem na Torre, menino incauto. Pois elas o seguem por longos percalços. Torturam e matam, ferem e gritam. Já que as almas dos homens mortais são as que mais lhes excitam”.
Como era belo o frondoso vale de Tuanar, com suas flores coloridas, singelas e esguias, exalando o adocicado perfume de seus muitos botões em flor. Ó doce Tuanar dos sonhos, cujos rios velozes, céleres e caudalosos, desciam das verdejantes montanhas para desaguarem em cascatas plácidas e riachos cintilantes nos quais águas límpidas, iluminadas pelo sol, brilhavam como um grande veio de prata. E mais além, distante, no horizonte tingido de azul, viajantes errantes poderiam ver, acima da relva esmeraldina agitada pelo vento, as grandes copas das árvores descendo uniformemente em direção as terras-baixas de Hassor.
Um mundo fabuloso de sonhos se espalhava por aquele vale. Muito tempo atrás, antes que os Pais dos Homens viessem navegando com suas naus sobre as cristas das ondas bravias do mar oriental, aquela terra havia sido morada de criaturas e espíritos dos bosques e das florestas. Os dias ali eram cheios de felicidade e harmonia, como se a própria bem-aventurança emanasse do profundo seio da terra. Entretanto, agora, a horrenda e famigerada guerra havia alcançado Tuanar, maculando sua paz, destruindo sua alegria; e a primavera ali feneceu.
Os brados selvagens e retumbantes dos guerreiros haviam sacudido as rochas e as fundações da terra. As pesadas botas de ferro dos homens e o tropel enlouquecido de seus impiedosos cavalos de guerra amassaram a relva verde e esmagaram as flores. As espadas, os arcos, as alabardas e as lanças fizeram com que o sangue rubro manchasse aquele solo que outrora fora imaculado. E o odor de morte assolou o ar que um dia havia sido puro. A guerra dos Alarins e dos Romëndur havia chegado até o benfazejo vale, afundando sua ancestral beleza em ruína e morte; e agora uma terra fria, desolada, jazia, onde, por milhas e milhas, podiam ser descortinados inúmeros corpos dilacerados de homens em poças coaguladas de sangue. A guerra havia sido cruel, como sempre fora e sempre será.
A lua prateada singrava com monotonia pelos céus noturnos, derramando sua luz oscilante e triste sobre os rostos enregelados dos homens que haviam tombado no campo de batalha, e seus feixes luminosos refulgiavam, em pequenos tons de luzes leitosas, nas espadas de aço, nas malhas e nos escudos chanfrados que se espalhavam pela extensa e mórbida campina. Os guerreiros sem vida, que se espalhavam pelo local, miravam seus olhos perdidos e vazios em direção ao céu escuro pontilhado de estrelas, emitindo um lúgubre brilho pálido. Pois, aqueles homens, que ali haviam caído, tentaram, em seu último e derradeiro momento em vida, vislumbrar na abóbada celeste a imagem de seus deuses; deuses que os haviam abandonados, entregando-os às garras tenebrosas da morte.
Um vento gélido, uivando morbidamente, atravessou o ar melancólico daquela campina. O silêncio repentino pairou sobre o cenário agourento de guerra. O farfalhar das asas das aves carniceiras, que já haviam descido de seus ninhos nas montanhas do sul, anunciaram a chegada de seus bicos recurvos e ávidos pelo faustoso e macabro banquete propiciado pelos homens. Morosamente, em meio ao odioso lufar das asas sinistras das aves, uma espessa neblina envolveu o vale. Pouco a pouco, através daquele mundo difuso de fantasmagoria, uma silhueta sombria se destacou entre as sombras cinzentas. Suavemente, o brilho do luar, agora em seu zênite, atravessou a neblina, iluminando a testa larga e obtusa da figura que aparentava ser um homem.
Sob os fulgores prateados da lua, o guerreiro solitário, de cabelos ruivos caídos em longas tranças até a altura dos largos ombros, vagueava de maneira silenciosa e aleatória. Em suas mãos grossas, imundas de sujeira, o sujeito segurava firmemente um enorme machado de guerra manchado de vermelho pelo sangue, agora seco, das inúmeras vidas tiradas por ele. Resmungando palavras desconexas, o enorme guerreiro seguia, perscrutando, com seus olhos azuis e tempestuosos, todo o arrasado cenário à sua volta.
O guerreiro, caminhando lentamente entre os corpos estendidos na relva, inesperadamente, estancou. Olhando para os dois lados, ele se agachou em direção ao solo. Suas mãos ávidas rapidamente tatearam um corpo desfigurado de um homem. Instintivamente, com um sobressalto, suas mãos se retraíram do corpo do morto, seus olhos azuis faiscaram como labaredas cintilantes ao se depararem com outro par de olhos que o espreitava das sombras. Então, forçando a visão dentro da pesada neblina, Wulfar pôde ver a silhueta de um guerreiro alto, de epiderme escura, sair das sombras e seguir em sua direção com a recurva espada desembainhada; o aço faiscando com o toque argentino do luar prateado. Espantado, diante daquela visão inusitada, o guerreiro ruivo rapidamente pôs-se de pé: arqueando as poderosas pernas e brandindo o gigantesco machado acima da cabeça, ele bradou sua ira:
— Ah! Quer dizer que ainda vive um dos cães negros de Rar-Ür? Vamos, saia das sombras, covarde! E diga-me seu nome, para que meus irmãos em Hiendörar possam saber o nome do último chacal de Äriad a cair perante o machado de Wulfar!
— Estranhos modos – foi a resposta fria do guerreiro que se aproximava -, têm os homens de Hiendörar, pois se atrevem a chamar os outros de covardes quando eles próprios agem como tal, pilhando os pertences de seus próprios irmãos que caíram na batalha! Vi o que você fazia, cão! Cuspo em seu nome; e lhe digo que não será em Hiendörar, mas sim nas moradas de além-mar que você dirá que topou com Rídur, o Leão de Irüme!
As palavras de escárnio, vociferadas por Rídur, fizeram com que a vista de Wulfar se incendiasse; faiscando como brasa incandescente. O encorpado guerreiro ruivo bufou e praguejou à moda rude de seu povo, e, com a boca espumando de ódio, ele investiu contra o guerreiro negro.
O grande machado silvou no ar. Rídur tentou se esquivar, no entanto, sua agilidade não foi suficiente a ponto de evitar o tremendo golpe que ribombou pesadamente em seu elmo. Fagulhas douradas saltaram com o impacto pesado do aço; as pernas de Rídur fraquejaram, e, por um instante, sua visão ficou escurecida. Entretanto, enquanto todo o seu corpo oscilava, ele conseguiu reunir toda a força existente por trás de seus ombros largos e, num esgar freneticamente selvagem, desferiu uma forte estocada com sua espada recurva: a lâmina afiada atravessou o corselete de ferro do gigante ruivo, rasgando seu peito, perfurando seu coração. Wulfar balbuciou ao desabar em direção ao solo; moedas, anéis de prata, pequenos amuletos, que ele havia pilhado dos mortos, foram manchados com o sangue rubro que escorria aos borbotões do enorme corte desenhado em seu peito.
Apoiando-se no cabo da espada manchada de vermelho, Rídur permaneceu encurvado. Tentando se recuperar do golpe de seu adversário, ele sorveu alguns minutos de ar. O elmo, atingido pelo grande machado de seu algoz, pesava-lhe excessivamente. Ao retirá-lo, ele pôde contemplar o grande dano produzido pelo potente golpe do bárbaro ruivo: o elmo, ornado de chifres de touro, revestido habilmente com cobre, havia sido fendido e, por um mero capricho do destino, sua cabeça não havia sido partida em duas. Por algum tempo ele se pôs a observar, com dedicada atenção, o elmo de guerra chanfrado; Rídur sabia que havia sido tênue a linha que garantira sua vitória sobre o Hiendöriano. Então, ao fim de suas indagações, com um suspiro longo e desanimador, ele jogou o elmo fora e, ao sacudir a lâmina opaca de sua espada gotejante de sangue, se pôs a caminhar por aquele mundo destruído de guerra que se descortinava à sua frente.
Uma região inóspita, incrivelmente melancólica, se assomava diante de seus olhos escuros e cansados. Andando como um homem perdido, que de repente se vê em um mar interminável de trevas, Rídur voltava o seu olhar para a face dos mortos. Olhando-os atentamente, ele buscava os rostos familiares de seus amigos e dos homens de sua terra. Aos tropeços ele seguia pelo terreno irregular, gotas quentes de lágrimas cintilantes embaciaram seus olhos quando ele viu os corpos de seus compatriotas varados por flechas de obsidiana dos arqueiros de Hiendörar. Pesaroso, ele pôde ver, em uma pequena saliência rochosa, o corpo de Amikór, irmão de sua mãe, esmagado pelo violento estampido dos cavalos de guerra.
Então, em um ponto adiante, seus pés de repente vacilaram; um profundo desatino impregnou seu coração como se, subitamente, ele houvesse bebido do cálice amaldiçoado do infortúnio. Arrancando as volumosas melenas de seus cabelos negros, Rídur, chorando de ódio e amargura, entregou-se às teias da loucura e do desespero. Gritos sôfregos, embalados em dor e tristeza, saíram de seus lábios secos e todo o mundo, aos seus olhos, se tornou escuro e maldito; pois, à sua frente, diante de sua vista endurecida, jazia o corpo inerte de seu amado pai, Hanak.
Tristeza e dor. Ódio e pesar. É difícil definir qual sentimento, qual sensação funesta se agigantou dentro de Rídur naquele derradeiro momento. Enlouquecido, lacerado por uma dor excruciante que rasgava seu coração, ele correu em direção ao corpo do falecido. Clamou inúmeras vezes o nome do pai; entretanto, nenhuma resposta foi dada: era tudo em vão. Ajoelhado, ele enlaçou suas mãos quentes nas mãos gélidas do morto e, entoando uma canção de lamento, despediu-se de seu amado pai. Não havia necessidade de enterrá-lo, isso Rídur sabia, pois que outro melhor lugar de descanso ele poderia encontrar para seu pai, do que o próprio campo de batalha onde ele tombara?
Entretanto, por algum tempo, ele ficou ali, diante da figura gélida, relembrando as antigas e efêmeras alegrias e o rosto daquele homem que o amara tanto. Então, enxugando as copiosas lágrimas, Rídur seguiu seu caminho. Partiu daquela região, cujo quinhão agora era a amargura. Seu coração, congelado pelo frio da guerra, ansiava pelo calor e as paisagens brandas de sua terra natal: ele, agora, ansiava pelos caminhos do leste longínquo, em direção a Ariäd. Sua sede de sangue e glória havia sido saciada.
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Fonte: www.contosfantasticos.com.br
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