14 setembro, 2010

1000 Olhos – Parte 2

Perdeu o início? Veja aqui!

IZBAZA


A lâmina brilhosa deslizava lentamente pela pedra molhada. Em um movimento intermitente de vai e vem, produzia um assobio agudo e irritante. Goran gostava de deixar sua espada afiada, embora seu golpe fosse letal, mesmo que ela estivesse cega. Em rodas de conversa fiada, o chefe da guarda real sempre ressaltava que a mão que empunha a lâmina é o que decide o combate. Entretanto, o guerreiro fazia toda questão de manter impecável seu instrumento de trabalho.
Depois da espada, Goran afiou um punhal de gume duplo e cabo de marfim, que sempre carregava pendurado na cintura. Seus olhos acompanhavam a dança hipnotizante da lâmina pela pedra negra de amolar. Estava frio e era a última noite de lua nova. Logo a tensão das noites sem lua diminuiria, a ponto de se esquecerem do pobre ferreiro sem olhos que fora ao encontro de Nrude.
O guerreiro, montado em um corcel, partiu para a cidade, deixando o palácio real de Anikka. Nada de errado havia acontecido nos dias anteriores, mas sempre se esperava pelo pior.
Draszen também estava partindo quando Goran passou pelo portão principal. O chefe da guarda olhou para o falcoeiro, que se despedia de Izbaza, e fez um muxoxo, deixando clara sua insatisfação com a cena.
- Até mais tarde, Draszen. Te encontro na taverna de Nastia logo mais – disse o careca, tentando desestabilizar a cumplicidade que fluía entre os dois amantes.
Draszen abraçou Izbaza e disse-lhe ao pé do ouvido para que não desse atenção ao guerreiro. Beijou-a na boca e partiu, carregando Deyan adormecido no colo.
O falcoeiro caminhou tenso pela cidade, atento a qualquer movimento. As ruas já estavam desertas. Janelas fechadas, portas trancadas e um silêncio soturno que só era quebrado perto da taberna, onde a algazarra prevalecia.
Olhou para a janela do quarto de Nastia e a viu de costas penteando as madeixas ruivas. Por coincidência, ou por destino, ela se virou e seus olhares se encontraram. Desde a noite em que discutiram, Draszen não havia aparecido para visitá-la. O coração estava apertado, mas o falcoeiro era um homem da razão. Precisava pensar em seu filho e em Izbaza.
Ao ver Draszen passar em frente a sua taberna, Nastia sentiu os pelos da nuca se arrepiarem e titubeou por um momento. Parou de escovar o cabelo e, de súbito, puxou a cortina de veludo vermelho e sumiu.
Draszen seguiu seu caminho para casa e mais uma vez se perdeu em pensamentos. Aquele era um conflito que o atormentava. Odiava ver o ressentimento carregado no olhar de Nastia, mas não queria magoar Izbaza, nem decepcionar Deyan. Mas os devaneios do falcoeiro foram abruptamente interrompidos por um grito que ecoou pela cidade, anunciando que algo terrível acontecera. Ainda imerso em seus dilemas, Draszen não compreendeu as palavras berradas na primeira vez. Porém, o apelo não tardou a se repetir: e era alguém pedindo socorro.
Com o filho nos braços, Draszen hesitou. O grito vinha de longe e talvez fosse tarde para qualquer ajuda. Mas bastou que viessem a sua mente as imagens de seu irmão mais novo e a figura cruel do cavaleiro que o levou, para que ele mudasse de ideia.
Tão rápido quanto pôde, Draszen correu em direção ao chamado. Deyan acordara assustado e o pai disse, ofegante, para que ele não se preocupasse. O menino fechou os olhos e encostou a cabeça no ombro de seu protetor, tentando escapar da realidade.
Os gritos ficavam cada vez mais altos, até que cessaram. Draszen diminuiu o ritmo ao chegar a uma larga travessa da rua principal pela qual seguia. A cena era um tanto confusa, mas Draszen sacou sua espada, deixou o filho no chão e partiu para o confronto.
Enquanto corria, tentava perceber o que acontecia. Rapidamente notou Goran montado em seu cavalo e com a espada em punho, tentando intimidar um cavaleiro de barba negra como a noite. Era da raça da noite, com certeza, pensou o falcoeiro. O ódio fez seu sangue ferver como poucas vezes na vida.
Draszen tentou se nortear e percebeu mais duas silhuetas naquele cenário. Deitado no solo, um homem com roupas humildes parecia dar seus últimos suspiros, envolto em sangue. Sua cabeça estava amparada pelas mãos de um sacerdote de Nrude. O rosto do religioso pareceu familiar, mas ele não teve tempo de pensar e foi auxiliar seu desafeto, Goran.
O cavaleiro, que carregava uma espada de lâmina larga e pesada, viu a aproximação de Draszen e puxando as rédeas do cavalo, fez com que sua montaria desse meia volta e fugisse.
- Vou atrás desse maldito – disse Goran, golpeando o ventre de seu cavalo com os calcanhares.
O falcoeiro guardou sua espada na bainha e se ajoelhou no chão de pedra para socorrer o clérigo e o jovem que se esvaia em sangue.
- Sem olhos – constatou.


Um camponês desavisado, ou teimoso demais, que teve o azar de encontrar seu algoz. A respiração cessara e a pele estava pálida como a neve do inverno que chegaria em breve. Nrude o tinha chamado.
- Draszen, obrigado – balbuciou o clérigo apoiando a mão nas costas do guerreiro.
Voltando seus olhos para o seu interlocutor, Draszen o reconheceu. Era Bair, a quem tinha grande apreço e o único entre os sacerdotes de Anikka com quem tinha amizade.
- Bair, o que aconteceu aqui? Está ferido?
- Não, meu bom Draszen. Eu passava pela rua principal, quando vi o cavaleiro atacando esse rapaz e comecei a gritar. Quando me viu, pareceu ter se assustado, mas percebi que foi Goran, que estava atrás de mim, que o fez vacilar. Não fosse a chegada do chefe da guarda, estaria sem meus olhos e sem minha alma também.
O sacerdote soltou suavemente a cabeça do aldeão e levantou-se, tentando limpar seu robe púrpura, manchado de sangue. Draszen também se levantou e correu de volta para Deyan, que observava com olhos arregalados toda aquela confusão.
As criadas do palácio ficavam a postos antes do sol nascer. A rainha Smiliana acordava de fato muito cedo e, todos os dias, suas aias a aguardavam às portas do aposento real.
Ao contrário de Andras, seu esposo, Smiliana orava à Nrude pela manhã, antes que os sacerdotes acordassem. A rainha achava a companhia deles um tanto incômoda e dizia que não conseguia orar com tantos tagarelas a sua volta. O rei preferia a tarde, pois as manhãs eram muito frias para passar horas em um salão de mármore gelado.
O cotidiano do palácio real era extremamente enfadonho e, às vezes, quando a monotonia tomava conta de seu espírito, a rainha inventava um fato novo para ocupar-lhe as horas do dia.
Numa manhã de inverno, algum tempo atrás, Smiliana botou em sua cabeça que precisava casar Izbaza, sua serva predileta. Com aquilo em mente, resolveu falar com o marido, ainda muito cedo. No início, o Rei pouco deu importância ao fato.
- Quero que Izbaza se case, Andras. Ela é jovem, muito bonita e se não se casar agora, vai ter que se ajeitar com um qualquer.
O rei, ainda com os olhos fechados, respondeu com a voz empolada:
- Case-a com Goran, querida.
- O que disse, Andras? Espantou-se a rainha, sem saber se tinha ouvido errado ou se o marido estava realmente sugerindo aquela sandice.
- Goran, o chefe da guarda, Smiliana. Ele é louco por Izbaza. Tem um bom posto e é um guerreiro formidável – completou, em meio a um bocejo.
- Deve ter batido forte a cabeça em uma de suas caçadas, meu rei – disse ela, fechando o punho e batendo na própria cabeça. – Goran é um nojento. Ele anda com todas as servas do castelo contra a vontade delas, além de ter aquele bigode repugnante. Quero um bom esposo para Izbaza.
Nesse momento, o rei percebeu que teria um problema, caso não desse importância aos anseios da esposa. Passou a mão na cabeça, ajeitando as madeixas castanhas.
- Deixe-me ver – disse Andras, pensativo. – O falcoeiro é um bom homem. Ele é viúvo. A esposa morreu no parto do filho, há pouco mais de dois anos. O nome dele é Draszen e é um bom amigo.
- Eu sei de quem fala, meu rei. Draszen é muito educado e gosto de ver o jeito com que cuida de seu filho. Demonstra responsabilidade e afeto. Mas ele tem aquela cicatriz no rosto.
- Acidente de trabalho, Smiliana. Ele treina falcões, oras. E todo grande guerreiro precisa ter cicatrizes. Elas deixam o homem mais másculo. Você já perguntou a sua criada se ela já não tem um amante?
- Ela não fala sobre isso. Acho que tem vergonha de dizer.
- Então eu falarei com Draszen depois do almoço. Agora, vá orar à Nrude e deixe-me dormir mais um bocado.
Smiliana não sossegou até que o esposo convencesse o falcoeiro a desposar sua criada. Depois de alguns dias, o fato estava consumado e desde então, Draszen passou a visitar Izbaza todos os dias e Deyan começou a ser pajeado pela jovem, dentro do palácio real.
Goran, que já tinha certa inveja da admiração do rei por Draszen, passou a odiá-lo. Desde que a jovem serva sequer tinha idade para servir a rainha, o chefe da guarda já a observava, desejando-a para si.
A situação era ainda pior, pois anos atrás, após um banquete, o rei fez uma promessa que não pôde cumprir. Mesmo porque, o vinho em demasia não o permitiria lembrar-se:
- Meu bom Goran, você é um soldado leal e destemido. Se houver algo que eu possa lhe dar para recompensar seus préstimos, diz-me agora que lhe darei – disse o rei, embalado pelo álcool.
Goran não hesitou um segundo sequer e, prontamente, respondeu:

- Izbaza, meu rei. A jovem criada de vossa majestade. Eu a quero como esposa, quando ela tiver dezesseis invernos.
O rei arregalou seus olhos azuis, estupefato.
- Aquela de cabelos loiros? Uma magrela de olhos verdes brilhantes? A mais estimada por minha esposa?
- Sim, majestade. É dela mesmo que estou falando.
- Mas Goran, você já esteve com quase todas as criadas do palácio. Porque essa jovem?
- Eu sonho com ela, majestade. Sinto seu perfume de menina e fico maluco.
- Está bem, meu caro Goran. Falarei com Smiliana pela manhã.


É claro que aquela promessa, regada a muita bebida, nunca mais foi lembrada pelo rei Andras. Goran também não insistiu, mas sentiu-se traído pelo monarca quando soube que sua amada havia sido prometida ao falcoeiro.
Um ano depois, Draszen e Izbaza continuavam comprometidos, sem no entanto, se preocuparem em formalizar essa união. Goran se animava, pois acreditava que enquanto eles não se casassem ainda teria alguma chance. E Izbaza, por sua vez, fazia questão de deixar claro que nunca se deitaria com o chefe da guarda. Apesar de não se entusiasmar com seu compromisso com o falcoeiro, usava daquele fato para afastar o guerreiro truculento.
Naquela manhã de inverno, a rainha levantou bem cedo e foi com suas criadas ao salão de mármore para orar a Nrude, o criador do céu e da terra. Grande foi sua surpresa ao encontrar Juraj, o sumo sacerdote de Anikka.
- Minha rainha, que bom vê-la logo pela manhã – disse o sacerdote, já ancião, de barba branca e com pouquíssimos fios de cabelo, escondidos por baixo de um capuz.


- O que houve, Juraj, meu velho? Caiu da cama? Não costumo lhe encontrar antes da hora do almoço.
- Vigília redobrada, majestade. Esta noite tivemos mais um ataque dos cavaleiros.
- O ferreiro! Já me disseram, Juraj.
- Não, majestade. Um jovem camponês. O ferreiro foi há cinco dias. Tivemos mais uma vítima nesta madrugada. Estava sem olhos!
- Que horror. E a guarda não viu nada?
- Ao que me chegou aos ouvidos, Goran encontrou-se com o cavaleiro e lutou contra ele. Mas o maldito deu fuga e sumiu na escuridão. São demônios, minha senhora.
- Vamos orar pela alma do pobre aldeão, Juraj. Mas de boca fechada. Vocês sacerdotes falam demais.
A rainha permaneceu em silêncio por mais de uma hora, pedindo misericórdia a Nrude e proteção para o povo de Anikka. Depois se retirou para seu passeio pelo bosque do castelo, junto à sua jovem criada.
- O que achas de Juraj, Izbaza?
- Desculpe-me, majestade. Não entendi o que a senhora deseja que eu responda.
- Somente a sinceridade, minha cara.
- Não sei o que dizer, minha rainha. Não presto muita atenção nos sacerdotes.
- Não minta para mim, Izbaza. Eu vejo como você torce o nariz toda vez que encontra com os sacerdotes.
- Perdão, majestade. É que não me agrada falar do alheio. Eu não gosto da presença deles, em especial de Juraj, porque ele tem uma feição um tanto arrepiante. Além disso, eles falam demais. Mas é só impressão minha, nunca fizeram nada que me fizesse não gostar deles.
- Eu sinto o mesmo, Izbaza. Na verdade, acho Juraj um ranzinza. Ele vive com aquele nariz enorme se metendo nos assuntos de Andras. Como fala esse velho. Pode até ser um bom homem, mas continua intrometido.
Izbaza sorriu e as duas caminharam por algum tempo pelo bosque, até que Smiliana notasse a falta de Deyan:
- Onde está o garoto, Izbaza? Porque ele não está por aqui conosco?
- Vou buscá-lo, majestade. Ele estava dormindo quando chegou e preferi deixá-lo descansar no dormitório.
- Mas ele já deve ter acordado, minha jovem. Vá buscá-lo. Esse bosque precisa de crianças para ter mais vida. Fica muito soturno com duas mulheres falando da vida dos outros.
Izbaza foi correndo buscar o garoto, que de fato já havia acordado. A rainha olhou os dois e ficou admirada com a afeição que a criança tinha pela jovem e percebeu a recíproca do sentimento.
- Sabe, Izbaza, vocês se parecem bastante. Os dois têm a mesma cor de cabelo e os olhos brilham com uma luz ímpar. Acho que a mãe dele era parecida com você.
A jovem sorriu, mas percebeu que a rainha vertera uma lágrima.
- Não desanime, minha rainha. A senhora logo dará um herdeiro ao rei.
- Izbaza, não posso me enganar. Esse é o trigésimo inverno que assola meus ossos. Doze deles, passei casada com Andras e ainda assim, nenhuma semente germinou em meu ventre. Ele tem verdadeira paixão por crianças, como eu, mas não conseguimos que Nrude nos envie um príncipe.
- A senhora tem tomado as ervas de Juraj, majestade?
- Sim, sempre. Mas de nada adianta.
Smiliana enxugou suas lágrimas com as costas da mão e sorriu ao olhar para Deyan, que corria pelo bosque atrás de borboletas.


O tempo passou mais rápido com a tarefa de cuidar do pequeno Deyan e logo a hora do almoço havia chegado.
Izbaza pegou o menino no colo e solicitou permissão para viajar no dia seguinte, pois uma vez a cada mês a jovem saía do palácio, com a permissão da rainha, para visitar um tio que morava no campo. Segundo a jovem, aquela era a única família que lhe tinha sobrado e ela precisava cuidar do tal parente, idoso e debilitado.
- Você precisa trazer esse seu tio para a cidade, Izbaza. Quando casares, Draszen há de acolhê-lo na casa de vocês – dizia a rainha com toda a certeza.
- Meu tio é um velho turrão. Ele reluta em vir para a cidade. Já tentei convencê-lo, mas não há meios de fazê-lo entender.
- Tudo bem, Izbaza. Amanhã terá o dia livre. Mas tome cuidado, se viajar à noite.
- Minha rainha, não se preocupe. As noites sem lua já passaram. Os cavaleiros ficarão longe por um bom tempo. Não há o que temer.
- Não só desses cavaleiros das trevas se constitui o perigo da noite, querida. Seria melhor que Draszen a acompanhasse.
- Obrigado, majestade, mas prefiro ir sozinha. Draszen tem seu trabalho aqui e durante a noite precisa cuidar de Deyan.
- Está bem, mas cuide-se menina. Você me é muito estimada.

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História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
Fonte: Jovem Nerd

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