VISITA INESPERADA
Izbaza havia partido para visitar seu tio no campo e isso preocupava Draszen. Com a neve, as estradas ficavam ainda mais inadequadas para viajantes. Principalmente para uma jovem franzina.
- Teimosa! – pensou alto, enquanto se lamentava por ela não ter aceitado sua escolta.
Draszen já estava em casa com Deyan quando a neve começou a cair. Aquele fora o dia mais gelado de todo o inverno e o falcoeiro se precaveu, acendendo a lareira antes do anoitecer para que o frio não os castigasse.
Por causa da neve, Deyan não quis dormir cedo. Ficou na janela observando os flocos alvos caírem do céu. Aquilo não era raro em Anikka, mas o garoto tinha verdadeiro fascínio pelo gelo que forrava o chão no dia seguinte a uma nevasca. E sempre que conseguia permissão do pai, ficava hipnotizado na janela.
- Amanhã faremos uma verdadeira farra lá fora, filho.
O garoto sorriu por alguns instantes, mas logo se virou bruscamente para a janela. Era o latido dos cães em direção à escuridão do lado de fora da casa.
- Fique aqui, Deyan. Vou ver quem é – disse o falcoeiro segurando uma lamparina com a mão esquerda e uma adaga com a direita.
O guerreiro levantou a tranca da porta com a ponta da arma e abriu-a numa fresta para ver quem despertara a atenção dos cães, que ainda latiam incessantemente.
- Quem está aí? – gritou, em tom intimidador.
- Sou eu, seu tolo. Bair, o sacerdote. Preciso de abrigo. Essa neve me pegou desprevenido – disse o homem de meia idade, vestido em um hábito púrpura, feito de tecido churdo.
- Bair, entre rápido, antes que congele – respondeu Draszen, abrindo o resto da porta ao reconhecer o sacerdote.
- Estava voltando à cidade e fui pego de surpresa por essa neve, meu bom Draszen.
- De surpresa, Bair? Essa neve já está prometida desde o início da manhã. Você é mesmo distraído.
- Eu estava na floresta, mal conseguia enxergar o céu. Graças a Nrude sua casa fica próxima à mata. Do contrário, estaria morto de frio.
Draszen serviu um copo de vinho ao sacerdote e puxou uma banqueta forrada com couro de iaque para que ele descansasse. Deyan olhava para o visitante com olhos atentos.
- Como está crescido o pequeno Deyan. Deixe-me ver esses olhos verdes, cheios de dúvidas, minha criança – disse o sacerdote, levando Deyan ao seu colo.
- Ele está quase um homem, não é mesmo Bair? Daqui a pouco já estará treinando falcões como o pai – disse Draszen, orgulhoso.
- Como ele se portou ontem à noite, depois do acontecido? – Perguntou o sacerdote quase cochichando.
- Foi valente, apesar de ter ficado assustado. Não chorou. Mas é difícil saber o que ele realmente está pensando. Ele é muito calado.
- E você e Izbaza, Draszen? Quando se casam? A presença dela será muito boa para o menino.
- Depois da caçada do rei nós marcaremos, Bair. Quero que realize a cerimônia, já que é o sacerdote mais próximo a mim. Os outros, eu mal conheço. A não ser Juraj, que encontro frequentemente no palácio, com o rei.
Bair bebeu o vinho e estendeu a caneca para que Draszen o servisse novamente.
- É claro que eu realizarei o seu casamento, meu amigo. Ficaria até ressentido se não fosse convidado para abençoar essa união. Mas já está demorando, não? Daqui a pouco a jovem desiste de você.
- Sim, eu sei. Mas logo marcaremos a data, Bair. Logo marcaremos.
Os dois conversaram durante um longo tempo enquanto Deyan adormeceu na janela. Draszen colocou-o em sua própria cama e preparou a cama do garoto para o visitante pernoitar.
Era uma cama pequena e o sacerdote, apesar de não ser muito alto, certamente ficaria com as pernas para fora. Mas, como ele mesmo pensara: melhor meia cama, do que cama nenhuma.
Após acomodar a todos, o falcoeiro se preparou para descansar. Tirou o uniforme da guarda e colocou uma veste de flanela espessa. Apesar do rumo da conversa que acabara de ter, começou a pensar em Nastia. Mas logo ouviu os cães latirem novamente.
- Malditos cães – disse o sacerdote ao ver o amigo se levantar. – Qualquer dia, faço um ensopado com essas tuas feras, Draszen!
- Eles são meus guardas, Bair – respondeu rispidamente, puxando a adaga e aumentando o fogo da lanterna. – Eles não latem à toa.
Draszen abriu novamente a fresta da porta, mas nada viu. Entretanto, os três cães não paravam de latir, o que deixou o falcoeiro receoso.
- Quem está aí?
- O que há? Ninguém responde? – Questionou o sacerdote, seguindo o guerreiro.
- Espere aqui. Vou calçar as minhas botas e dar uma boa olhada lá fora.
Draszen fez o que disse, mas ao invés de sair com a adaga, levou sua espada. Pediu ao sacerdote que ficasse com Deyan e soltou os cães para que fossem atrás do barulho.
Os cães correram para a parte dos fundos da casa, que era voltada para a floresta, e Draszen foi atrás, em traje de dormir, botas e espada em punho. Uma cena ridícula, não fosse a tensão do momento – pensou. O gelo dificultava seus movimentos, mas rapidamente alcançou os cães que estavam parados latindo para a escuridão.
Draszen iluminou a mata com a lanterna e viu um lobo grande e negro com os dentes cerrados, como se estivesse a espera de um ataque dos cães. Suas gengivas encarnadas estavam repletas de saliva, que pingava a cada rosnada. Draszen tentou acalmar seus guardas e puxá-los para dentro, sem tirar os olhos da temível criatura.
- É só um lobo, ele não nos fará mal. Deve estar com fome. Deixem-no partir. Ele prefere uma boa ovelha à carne dura de cães de guarda – disse o falcoeiro a seus cães, como se eles o entendessem.
O lobo deu uma volta ao redor do próprio corpo. Depois, soltou um uivo agudo e ameaçador.
O sangue de Draszen gelou mais do que a neve.
O guerreiro recuou lentamente, andando de costas, com os cães seguros pelas coleiras. Sua intenção era apenas retornar em segurança e não deixar os cães enfrentarem o lobo, que, embora sozinho, era bem maior que seus sentinelas.
Quando já estava quase na soleira da casa, porém, outro som que remetia a lembranças de seu passado fez-se ouvir: o relinchar grave seco de um cavalo. A princípio, Draszen preferiu não olhar para trás, mas logo se concentrou e virou-se para o local de onde vinha o barulho.
- Malditos! – gritou.
E lá estava o falcoeiro diante de um enorme corcel negro e um cavaleiro ameaçador, com espada em punho.
A visão paralisou Draszen por alguns momentos. O brutamontes tinha uma barba loira, comprida e emaranhada numa capa de pele de urso. Seu elmo de ferro trazia meia dúzia de pequenos chifres, nascendo no cocuruto e nos lados.
Seria o mesmo da noite passada?
- Ataquem! – gritou, soltando os cães.
Os cães avançaram contra o cavaleiro. O corcel empinou as patas dianteiras soltando um relincho estridente. Ao voltar às quatro patas, porém, atirou longe um dos cães com um coice.
Draszen largou a lamparina no chão e correu em direção ao guerreiro com a espada levantada acima da cabeça. Porém, antes que o falcoeiro se aproximasse o bastante para desferir um golpe, seu oponente deu meia volta e partiu iluminado pelo quarto crescente.
- O que está havendo? Perguntou um atordoado Bair, saindo de casa com a adaga na mão.
- Volte para dentro, Bair. Mandei-o ficar com Deyan.
- Tenha calma, Draszen. Deyan está a salvo. Entre logo e estaremos todos seguros.
Draszen entrou e contou ao sacerdote o que vira, deixando-o boquiaberto:
- Um lobo maior do que esses monstros que você chama de cães de guarda? De quais infernos vêm essas criaturas?
- O lobo veio do mesmo inferno de que veio esse cavaleiro. E é noite com lua. Já estamos no quarto crescente, diabos! Eles nunca haviam atacado em noites assim – disse Draszen, olhando pela janela.
- Talvez não fosse um cavaleiro da escuridão. Talvez fosse apenas um salteador.
- Não me venha com sandices, Bair. Não foi a primeira, nem a segunda vez que me deparo com estes monstros. Se não te lembras, foi um da raça da escuridão que levou meu irmão Druje. E algo naquele semblante me era familiar. Acho que pode ser o cavaleiro da noite passada. Assim que amanhecer, irei notificar o rei Andras. Há anos isso acontece e ninguém toma uma atitude de verdade. Precisamos acabar com esta ameaça de uma vez por todas. Quantos mais precisam morrer para que o rei se manifeste como se espera dele?
- Desculpe-me, Draszen. Eu havia me esquecido que esses guerreiros tinham seqüestrado seu irmão. Irei com você e darei meu testemunho. Ainda que não tenha visto o tal cavaleiro, ouvi os cães latindo, o uivo do lobo e o relinchar do cavalo.
A exaltação de Draszen acordou o pequeno Deyan que correu para a sala, assustado. Bair o acalmou com brincadeiras.
Draszen não pregou os olhos durante o resto da noite e começou a temer pela vida de Izbaza, caso ela não tivesse conseguido voltar do campo antes do escurecer.
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História: Fernando Russell @cancerjackIlustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
Fonte: Jovem Nerd
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