A GRANDE CAÇADA
Os mais importantes nobres de Anikka estavam reunidos naquela manhã gelada, de céu branco e vento cortante. Todos os duques aguardavam a chegada do suserano ao pátio interno do palácio. Andras gostava de atrasar sua chegada aos compromissos, para valorizá-la, mas a ansiedade pela caçada de inverno fez com que o monarca não demorasse tanto desta vez.
O clangor de trombetas fez-se ouvir assim que ele adentrou o local, enquanto os nobres curvaram-se em sinal de reverência. Gritavam salves ao rei.
Andras quase não se continha de orgulho. Estava montado em sua égua baia. Com o peito estufado, quase não respirava, para não perder a postura e a imponência. Trajava uma pele de urso pardo, presente dado pelo duque Oleg, de Driet, irmão de sua esposa e o maior senhor feudal do sul de Anikka.
Ao lado do rei estava Draszen, seu falcoeiro. Em outras caçadas o guerreiro sempre exibia um largo sorriso, mas desta vez era diferente. Draszen estava carrancudo. O cenho franzido e o maxilar travado eram reflexo de uma pequena discussão com o rei a respeito dos cavaleiros da escuridão.
Depois da última aparição, em noite de lua, Draszen apelou ao rei para que fosse organizada uma equipe de caça em busca do covil daqueles criminosos. Andras se negou a fazê-lo. Ao invés disso, chamou o falcoeiro para morar dentro dos muros do palácio, onde era mais seguro.
A discussão se estendeu por dias sem, no entanto, chegar-se a um consenso. Draszen sentia-se traído pelo rei. Por dias ponderou sobre sua raiva, pois tinha motivos de sobra para nutrir pelo monarca eterna gratidão. Mas tratava-se da segurança de sua família – naquela noite, seu filho e sua futura esposa poderiam ter sido vítima dos algozes da noite.
Apesar de tudo, Draszen estava compenetrado, pois sabia a importância que o rei dava àquele evento. Em seu pulso estava o açor de olhos rubros. A estrela da caçada.
Outros nobres ostentavam seus terços, todos cobertos por caparões. Eram gaviões e búteos de pequeno porte, especiais para a caçada de inverno, onde as regras diziam que apenas fossem usadas as aves de baixo vôo.
- Belíssima ave, meu rei – disse Oleg, apreciando a íris da ave de Andras. – É sem sombra de dúvida o mais belo açor que já vi. Espero que seja tão feroz quanto formoso.
- Ele é, meu caro Oleg – retrucou o rei, com um amplo sorriso de satisfação pelo elogio.
Andras abraçou seu cunhado e procurou, sem sucesso, pela ave do nobre.
- Onde está seu pássaro, Oleg? Sempre tens terços magníficos, mas hoje não vejo nenhum. Desististe da caçada?
- Não, majestade. É que tenho uma surpresa para essa caçada. Uma ave especial que me será trazida na ocasião oportuna.
O rei levantou a sobrancelha, deu de ombros e seguiu em frente para cumprimentar os outros vassalos. Alguns por quem tinha muita amizade, outros nem tanto. Mas a política fazia com que ele os tratasse como grandes amigos.
Todos montaram em seus cavalos e partiram em direção aos campos de caça. A rainha Smiliana acompanhava tudo do alto do palácio e silenciosamente desejou boa sorte ao marido. Izbaza também observava seu futuro esposo partindo, sem demonstrar qualquer sinal de comoção.
- Então, segundo as palavras do falcoeiro, hoje à noite no banquete marcaremos uma data para o casamento – disse a rainha, deixando a aia constrangida.
- Sim, majestade. Espero que sim. Ou, no mais tardar, amanhã, quando os homens estiverem menos embriagados.
A rainha não segurou os risos e concordou com sua criada, balançando a cabeça em sinal positivo.
A caçada se iniciou em um bosque próximo à cidade, mas logo os nobres seguiram para os grandes campos do sul, onde a fauna era mais rica e as aves poderiam ter mais trabalho.
A cada presa capturada, os nobres aplaudiam e teciam comentários sobre o vôo e o ataque de cada predador. Não tardou até que o açor de olhos vermelhos começasse a se destacar dos demais pássaros. Como Draszen previra, aquele era um terço campeão.
O grupo já acumulava lebres, faisões e pequenas raposas, quando o rei Andras lembrou-se que seu cunhado ainda não havia apresentado seu rapinante.
- Onde diabos está esse pássaro, Oleg? Esbravejou o rei.
Outros nobres também ficaram curiosos e começaram a questionar a ausência do duque na caçada.
- Já está a caminho, majestade. Já ordenei ao meu criado que a trouxesse – respondeu Oleg, arqueando suas sobrancelhas quase brancas, de tão louras.
O rei balançou a cabeça com desdém e continuou a cavalgar pelo campo coberto pela neve. Embora feliz com seu açor, sentia que a caçada ainda não estava completa. Estava claro que seu pequeno predador era superior, mas carecia ainda de um feito realmente arrebatador.
Já passava do meio do dia, quando dois homens chegaram trazendo a ave do duque Oleg. Um deles era o falcoeiro de Driet, um homenzarrão de quase dois metros de altura, montado em um cavalo branco. O outro vinha dos povos do sul. Era pequeno e franzino, pele morena, olhos rasgados e um ralo bigode que lhe caia pelos cantos dos lábios. Montava um pônei castanho de aparência selvagem e crina ouriçada. Trazia a tal ave agarrada ao punho.
A criatura causou espanto entre nobres e criados. Era um animal enorme e bem diferente dos predadores usados nas caças em Anikka. Estava com a cabeça enfiada em um caparão adornado, mas notava-se que era uma águia. E não uma águia comum, mas sim pelo menos duas vezes maior do que se estava acostumado a ver nos céus daquele reino.
- Mas de que infernos você tirou essa monstruosidade, Oleg? Perguntou Andras, estupefato.
- É uma águia dourada, majestade. Trouxe-a dos reinos selvagens do sul, a oeste do Mar Negro.
- E o que ela vai caçar? Algum peixe nos lagos congelados? Zombou um duque, emendando uma gargalhada que fazia sua imensa barriga balançar.
- As águias do sul são diferentes das nossas, meu caro Ilich – respondeu Oleg, sem olhar para o colega de caça. – Não são pescadoras. Preferem presas um pouco maiores.
- Então que cace uma codorna bem gorda e bem lenta, pois duvido que consiga perseguir uma boa lebre, mesmo que ela fosse coxa – continuou provocando o rotundo nobre.
- Majestade, se me permite um pedido, gostaria de adentramos mais às estepes ao sul – solicitou Oleg.
- Mas a melhor caça está aqui, Oleg. Se formos mais para o sul, só vamos encontrar os lobos – retrucou o rei.
Oleg calçou sua luva e pegou a ave que estava com seu servo. Depois mirou seus olhos cinzentos para o rei e disse, contundente: – Essa é exatamente a intenção, majestade.
O rei arregalou os olhos, mas não viu outra saída que não fosse a de aceitar a sugestão do cunhado. Juntou seus vassalos e deu a ordem para rumarem para o sul. Todos, sem exceção, ficaram com os olhos fixos no animal. Mostravam-se ansiosos para que lhe fosse tirado o caparão, contudo, ainda duvidavam de sua perícia na caça.
Sim, pois era difícil crer que aquele pássaro poderia desenvolver uma velocidade tão grande quanto à de gaviões e açores. Ou que faria manobras de vôo tão ágeis quantos os pequenos pássaros. Isso os levou a pensar que talvez fosse realmente eficaz caçando animais maiores e mais lerdos, porém, era sabido que um lobo só poderia ser apanhado por uma matilha inteira de cães.
As dúvidas permaneciam quando a comitiva chegou à área que era conhecida como Manto Branco. Uma imensa planície coberta de neve e infestada de lobos de pelos alvos, como o mármore.
Não tardou para que a comitiva avistasse ao longe um lobo solitário, estático, quase imperceptível, com seu pêlo claro se confundindo com a neve.
O duque Oleg retirou o caparão de sua águia revelando suas íris brilhantes como o ouro. O rei ficou boquiaberto, mas não ousou pronunciar uma única palavra. Apenas observou o pássaro abrir o enorme par de asas castanhas e, com um impulso contra o antebraço de seu dono, alçar vôo majestosamente.
Mal notou o deslocamento da ave, o lobo iniciou sua fuga. Seus passos desajeitados sobre a neve contrastavam com o vôo sublime, veloz e retilíneo da caçadora.
- Por Nrude, ele está fugindo – disse o rei, quebrando o silêncio.
Draszen também parecia não acreditar no que via. Prendeu a respiração e desejou que a águia não tivesse sucesso. Mas logo se admirou ao observar o bote perfeito da águia sobre o dorso do lobo.
Os nobres e seus servos gritaram ao ver a águia fincando suas garras mortais na carne da presa. E repetiram os berros ao notarem a tentativa frustrada do lobo de contra-atacar. A cada tentativa de revide, a águia abria as asas e imobilizava sua presa.
Oleg golpeou a barriga de seu cavalo com os calcanhares e partiu em galope para perto de seu rapinante. Apesar de hesitarem por um instante, os outros nobres partiram para testemunhar de perto aquele embate.
A águia, senhora da situação, esperava por seu mestre com uma garra encravada na garganta e outra no focinho do lobo, que a cada espasmo se aproximava mais da morte.
Já o falcoeiro real chegou ao local e passou a ter devaneios a respeito daquela ave. Pensou em treinar uma águia para seu rei, mas a idéia logo foi preterida por outra ainda melhor: treinaria águias para atacarem os cavaleiros da escuridão. Aqueles lobos do inferno não rondariam nunca mais sua casa.
Oleg desceu de sua montaria e puxou uma adaga de lâmina curva, que deu fim aos últimos suspiros do lobo. Depois retirou de uma pequena bolsa de couro um pedaço de carne crua de lebre, que ofereceu à águia, fazendo-a soltar o lobo e se empoleirar em seu antebraço.
- Magnífico, meu caro cunhado. Nunca vi nada parecido em toda minha vida. Foi realmente um espetáculo – disse o rei.
- Meu caro Andras, a carne de lobo não é tão apetitosa quanto a das perdizes e lebres caçadas pelo seu açor de olhos de fogo, mas acho que vossa majestade ganhará uma nova capa para substituir esse urso velho e pesado que cobre suas costas – respondeu Oleg.
- Me diga, Oleg, essa águia: existem mais delas onde você a conseguiu?
- Sim, majestade. Talvez não tão belas, porém eu já pedi para que me trouxessem mais alguns exemplares para substituir essa, que darei à vossa majestade como prova de minha lealdade.
O rei sorriu contente com o presente, embora pouco surpreso, já acostumado com os agrados de seus vassalos. Não era raro que oferecessem suas melhores aves como sinal de subserviência e fidelidade.
Como de costume, o dia de caça terminou com um banquete memorável no palácio real de Anikka. Para acompanhar a carne conquistada pelas aves, o rei mandou servir seu melhor vinho. Em pouquíssimo tempo, estavam todos embriagados, contando vantagens sobre seus pássaros.
Draszen, incentivado pelo rei, aproveitou a oportunidade para finalmente marcar a data de seu matrimônio. Andras prometeu que ele receberia um ótimo presente na data e que teria um aumento em seu soldo. Naquele momento, Goran, já enrubescido por incontáveis goles de vinho, deixou o banquete furioso, pouco preocupado em esconder seu aborrecimento.
- Não se preocupe com esse careca, Draszen. Em trinta dias você se casará sob a minha benção e ele não poderá fazer nada para impedir sua felicidade. E enquanto isso, meu caro, vamos apurando a técnica dessa ave magnífica do sul. Antes que o inverno acabe, quero poder caçar alguns lobos.
Conforme combinado, na manhã seguinte, Draszen iniciou seu treinamento com a águia dourada. O duque Oleg ordenou a seu lacaio do sul para que permanecesse na capital e auxiliasse no que fosse preciso. Entretanto, Draszen se acostumou rapidamente com o temperamento e as características do novo pássaro.
Depois de uma semana, o servo de Oleg partiu para o ducado de Driet e Draszen pôde observar com admiração a águia caçando raposas e pequenos cervos, com imensa facilidade.
A excitação que Draszen sentia ao adestrar aquela ave fez com que ele levasse Deyan para um dia de caça. Os dois foram para um bosque com a ave e Draszen, como de costume, ensinava ao filho os movimentos de comando e os truques que aprendera em sua longa experiência naquela ocupação.
Os dois chegaram a uma clareira, onde soltaram a ave para tentar capturar um pequeno gamo. A águia foi certeira mais uma vez – e Draszen correu para verificar a vítima, deixando Deyan a sós por um breve momento.
Foi quando ouviu o relinchar de um cavalo. No meio do caminho entre Deyan e a águia, Draszen só teve tempo de olhar sobre o ombro esquerdo, para perceber a cena tenebrosa que estava por vir.
A menos de dez metros de Deyan estava o cavaleiro que rondara sua casa semanas atrás. E em plena luz do sol.
- Por Nrud, não – gritou o falcoeiro dando meia volta.
Seu sangue estava gelado. O rosto empalideceu de repente. Aquilo não podia estar acontecendo. Não de novo. Depois de perder seu irmão, Draszen estava prestes a perder o próprio filho para os cavaleiros.
Suas pernas começaram a se mover o mais rápido que podiam e, sem parar de correr, Draszen sacou sua espada. O suor que escorria por suas têmporas se misturava com as lágrimas que caiam copiosamente de seus olhos.
- Maldito! Me encare pelo menos uma vez, desgraçado – gritava, enquanto se aproximava.
O cavaleiro parecia imune aos gritos do falcoeiro e sequer sacou sua espada. Tal qual uma estátua bizarra feita de pedra, iluminada pelo sol da tarde, permaneceu estático, observando o desespero alheio. Até que com um movimento ágil, carregou a criança e partiu, sem dar ao falcoeiro qualquer chance de reação.
Draszen tentou perseguir o algoz, mas a distância entre os dois só aumentava. Em um último ato de desespero, o falcoeiro arremessou sua espada e caiu de joelhos, observando-a cair verticalmente no chão, longe do alvo.
De joelhos no meio do bosque, Draszen soltou um urro abissal, que ecoou pelo bosque e assustou os animais a ponto de fazê-los fugirem.
Sentimentos terríveis de ódio e medo dilaceravam seu coração. E sua alma agonizava. Com a angústia de quem sentia ter sido incapaz de proteger sua própria família.
História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
Fonte: Jovem Nerd
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