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Cork era uma cidade legal. Eu moraria lá o resto da minha vida, mas seus habitantes não eram muito amistosos com estrangeiros. Javier tinha reputação na cidade, mas era uma exceção, porque ele era quase um ídolo.
Depois que “visitamos” o último endereço, perguntei o porquê daquela loucura. Trocar tiros por chuteiras? Isso é insano! Ele riu da minha cara. Explicou-me que fazia aquilo por causa do futebol e pelos amigos. Disse ainda que a única coisa que o mantinha vivo era a certeza de que, no final de cada mês, sempre haveria o futebol em Cork.
- Chuteiras australianas para Will e Sean. Chuteiras sul-americanas, para mim, e para os hooligans – disse ele, enquanto dirigia a moto pela rua do canal norte.
Havia ainda uma coisa que me perturbava. Perguntei a Javier:
- Aquele trecho da Bíblia que você declamou… Você mudou o texto, não é?
Javier riu e olhou sobre o ombro esquerdo:
- Bíblia? Eu nunca li a Bíblia, chico!
Paramos em um bar próximo ao cais de St. Patrick. O nome era Druida Verde e mais parecia uma taberna medieval. Só faltavam os javalis assados. Os caras mais truculentos do mundo estavam ali. Era o tipo do lugar que eu nunca entraria sozinho. Ou se entrasse, provavelmente não sairia inteiro.
- Salve o nosso craque! – gritou um ruivo barbudo e cheio de sardas no rosto.
Todos no bar levantaram suas canecas cheias de cerveja e gritaram feito loucos quando viram Javier entrar.
- Trouxe chuteiras e charas!
A gritaria aumentou e todo mundo, menos eu, começou a cantar uma música cuja letra não fazia sentido algum. Estavam todos bêbados e acho que sequer perceberam minha presença.
Aquele era o quartel general dos Celtics. Hooligans enlouquecidos, que tinham como única motivação viver pelo time que torciam e jogavam: o Cork City Foottball Club.
Graças ao Deus Pai, eu não abri a minha boca para falar de futebol. Javier – ou El Toro, como era chamado ali – também teve a presença de espírito de não falar que eu era americano. Disse apenas que era de bem longe. O grande problema é que até então, futebol para mim era o que os Jets jogavam. Aquilo que eles idolatravam era o soccer e eu achava que era jogo para meninas.
Eu parecia estar invisível no bar. Ninguém falava comigo e nem perdia atenção em mim. Isso se estendeu até minha bexiga inchar de Guinness e eu perguntar onde era o banheiro. Um dos hooligans apontou para uma porta nos fundos e, quando me virei, todos se voltaram para mim e viram a estampa da minha camiseta, os Celtics ficaram furiosos.
Javier foi bem hábil em me defender. Por um momento, pensei que seria espancado pelos brutamontes embriagados. Tudo porque tinha uma cruz estampada nas costas da camisa, justamente o símbolo do time rival do Cork City: o Catholics Football Club.
Após desfazermos o mal-entendido, me deram uma camiseta listrada em verde e branco, com um brasão amarelo no peito e me mandaram tirar a que eu vestia. Botaram-na num balde de alumínio e atearam fogo. Eu não discuti. Para mim, estava tudo “muito ótimo”. Eu só queria sair vivo dali.
Bebemos cerveja durante toda a tarde e ao cair da noite, pegamos a “Estrada Velha” para Youghal. Voltamos com a mochila cheia: alguns DVDs de filmes antigos, um óculos escuro da Oakley, uma caixa de balas de teflon e a promessa de explosivos C4. Tudo trocado por charas e chuteiras.
As charas realmente valiam bastante. Tanto quanto a heroína em Nova York. Mas o engraçado é que, cada pessoa que trocava mercadorias por charas dizia a mesma coisa: vou trocar esses charas por algo. Parecia que ninguém usava os malditos charas.
Bem, Javier usava, às vezes.
Bem, Javier usava, às vezes.
No caminho de volta, a chuva recomeçou. Javier diminuiu a velocidade e me mandou dobrar a atenção. Chegamos em casa completamente encharcados. Os cães nos receberam com festa e também estavam molhados. Eles tinham zoado a casa inteira. O espanhol ficou louco com eles e começou a berrar em seu dialeto gallego.
O dia tinha sido cansativo e eu queria dormir até o meio-dia. Ingenuidade a minha achar que um dia teria a sorte de dormir uma noite inteira sem precisar ficar alerta ou ser acordado no meio da madrugada com um alarme.
Não eram nem 3 horas da manhã quando o sino, que servia de campainha da casa, começou a badalar incessantemente. Os cães começaram a latir no quintal e Javier, que estava vendo um filme em DVD, se levantou rapidamente com uma pistola na mão.
- ¿Quien és? – Perguntou, subindo as escadas da torre improvisada que construíra próximo ao portão.
A chuva estava ainda mais forte e era difícil ver quem tocava o sino. Corri para a torre com minha calibre 12 carregada e Javier ligou um holofote mirando no vulto que estava à porta.
- Sean, o que houve? - Gritou Javier ao reconhecer o amigo, que vestia uma capa de borracha amarela e tinha uma espingarda na mão.
- Espanhol! Aqueles malditos filhos da puta mataram Will. Eles mataram Will e os meninos, Espanhol! Vamos atrás deles, Javier!
- ¡Puta de la madre! – disse Javier descendo rápido as escadas.
Eu desci também e abrimos os ferrolhos que trancavam o portão. Sean estava transtornado. As lágrimas se misturavam com a chuva escorrendo por sua face e seus berros ecoavam pela escuridão.
Nós levamos Sean para dentro da casa. Javier serviu uma dose dupla de MacCutcheon 60 anos para o amigo. Foi pouco e o ruivo tomou a garrafa da mão do espanhol.
- Como você ficou sabendo disso?
Sean contou que ouviu uma explosão vinda da estrada para Ardmore, pegou a caminhonete e foi ver o que tinha acontecido. Quando chegou lá, viu o caminhão de Will em chamas. Tentou socorrer o filho, mas era tarde. O corpo estava muito queimado e crivado de balas. Ele e os amigos foram emboscados na volta a Youghal. Ninguém sobreviveu.
- Foram os Dragões, Espanhol. Foram os malditos Dragões.
Eu ouvi aquilo atentamente e, por um momento imaginei dragões voando pelos céus e cuspindo fogo, como naquele filme antigo. Acho que o nome era Reino de Fogo, onde os dragões se alimentavam de cinza. Ou não? Já não me lembro direito do enredo.
Mais uma vez, tive o bom senso de ficar calado. Os Dragões eram um grupo paramilitar oriental que tentava invadir a região. Eram os piores inimigos de Sean e Javier.
- Malditos chinas – resmungou Javier. – Precisamos contra-atacar.
Os Dragões eram mais numerosos e organizados que os irlandeses. Além disso, eles tinham tecnologia. Dizia-se por toda Europa que eles estavam até ressuscitando a rede. A nosso favor, só havia o fato de que eles ainda não estavam ambientados à cidade. Era mais fácil para o pessoal do Sean se defender, do que para eles invadirem Youghal.
Ainda estava caindo um aguaceiro dos infernos, mas mesmo assim, fomos para a estrada de Ardmore na pick-up de Sean. Era uma Hilux com o chassi elevado e rodas enormes, que o ruivo e o filho tinham remontado completamente, além de improvisado alguma blindagem.
Quando chegamos ao local do incidente, demos uma olhada no caminhão de Will. Não restava mais nada além da carcaça do veículo e o cheiro de queimado. Os Dragões tinham levado toda a mercadoria que ele havia ido buscar no norte. Além de perder o filho, Sean sabia que os Dragões estavam mais fortes e tinham muitos explosivos.
Por causa do barulho da chuva caindo, demorou até que percebêssemos seus carros voltando para terminar o serviço. Javier olhou para a estrada e gritou:
- Carajo, hombre! Puta de la madre. Los Dragónes estam volviendo.
Eram três carros e duas motos em alta velocidade. Estavam longe, mas vinham rápido.
Sean entrou na pick-up e ligou o motor, enquanto eu e Javier fomos atrás na caçamba. Os carros dos Dragões eram mais rápidos que nós, mas pensamos que talvez pudéssemos igualar as chances se resistíssemos à bala.
Não foi surpresa nenhuma encontrar uma metralhadora .50 na caçamba da caminhonete. Javier a apontou para trás e seguiu um dos carros com a mira. Eu fiz o mesmo com minha espingarda.
O ruivo acelerou e nós seguimos rumo à cidade, com os Dragões nos perseguindo. Javier não disparou um tiro até que os perseguidores estivessem bem próximos. Eu fiz o mesmo.
Quase quando estávamos chegando às ruas de Youghal, os orientais começaram a atirar com suas submetralhadoras israelenses, apoiados do lado de fora das janelas dos carros. Javier começou o seu showzinho particular. Parecia um vídeo game de guerra. Os primeiros a tombar foram os Dragões que vinham de moto.
Como não podia roubá-las, Javier as destruiu. E isso partia seu coração. Eram motos especiais, inspiradas em um desenho animado japonês do século passado. Eram realmente muito iradas e Javier se lamentava por nunca ter conseguido capturar uma inteira.
As Akira Bikes – como ele as chamava – eram blindadas. Resistiam ao tiro de uma 9mm à queima roupa. Resistiram até aos tiros da minha 12, mas quando se tinha uma M2 .50, o negócio era outro. Logo as duas motos foram para o espaço.
Os carros dos Dragões eram Hyundai Qarmaks, que contavam com uma blindagem bem mais resistente. Chegamos a capturar um desses num confronto posterior e devo acrescentar: esses caras sabiam fazer carros.
Os meus tiros com a calibre 12 não surtiam efeito algum e os disparos da M2 apesar de danificarem a lataria, não chegavam aos motores, nem os impediam de seguirem no nosso encalço, porque a tal blindagem era extremamente resistente e igualmente leve.
A perseguição só teve fim quando chegamos ao centro da cidade. Javier deixou a metralhadora de lado e acendeu um morteiro sinalizador. Sean havia seguido por ruas mais estreitas onde ele sabia que encontraria reforços.
Logo os ocupantes do primeiro carro descobriram o que era a fúria irlandesa. Ewan, o loiro louco, estava à espera do comboio em uma janela do quarto andar da Torre do Relógio.
- Diga adeus, olho rasgado! – Gritou Sean, antes de ver o aliado disparar um foguete.
O primeiro carro dos perseguidores subiu uns 5 metros com a explosão. Os outros dois, que vinham atrás a toda velocidade, tiveram que frear bruscamente para não serem atingidos pelos destroços.
Os Dragões sobreviventes deram meia volta e fugiram para o norte. Eles não regressariam naquela noite. Mas estava claro que a guerra tinha chegado ao seu ponto mais crítico. Não fazia nem uma semana que eu havia chegado à Europa e já estava metido numa confusão pior do que qualquer outra que eu já tinha visto na América.
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Cores: Felipe PrietoFonte: Jovem Nerd
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