06 outubro, 2010

1000 Olhos – Parte 6

1000 Olhos é um conto seriado de Fernando “Tucano” Russell, publicado mensalmente no Jovem Nerd. Perdeu o início? Confira aqui!

TRAIÇÃO E SANGUE DERRAMADO


Como um estrondo ameaçador no meio da noite, duas dezenas de magníficos corcéis golpeavam seus cascos contra a neve retida na estrada. A tropa era guiada por dez imensos cães de caça, que respiravam ofegantes, tentando farejar algum sinal de Deyan.

Certamente seria uma cena aterrorizante para os aldeões que espiavam pelas janelas, não fossem os uniformes e as flâmulas com a insígnia do rei, mostrando que aqueles homens estavam ali para proteger o povo.

Cavalgavam com tochas nas mãos, formando uma serpente de fogo na escuridão. Inquiriam camponeses ao passar por suas casas, mas estes diziam nada ter visto, talvez temendo represálias dos cavaleiros da escuridão. Porém, o mais provável mesmo era que o cavaleiro tivesse evitado as partes mais habitadas da região.

O rastro se perdia muito próximo à clareira de onde o garoto havia sido abduzido. A tropa procurava incessantemente por uma pista e mesmo os cães sofriam para achar qualquer sinal que os ajudasse. Mas quando Draszen já estava à beira do desespero, finalmente a matilha sentiu o cheiro de Deyan e apontou uma trilha que seguia para o sul.

O sol já se preparava para se mostrar quando finalmente um dos batedores encontrou o rastro do cavaleiro, alertando os demais soldados para que fossem para a direção correta.

Durante horas os cavaleiros cavalgaram sem cessar até que chegaram à estepe. Lá, tiveram de fazer uma escolha.

- Agora que estamos em campo aberto, os cães não conseguirão acompanhar o galope dos cavalos – disse Tcherno. Precisamos resolver o que fazer e essa é uma decisão sua, falcoeiro. Podemos continuar nessa velocidade e levar os cães, ou podemos deixar os cães e prosseguir em uma velocidade maior.

- Libere os cães. Não percamos mais tempo – respondeu Draszen, sem titubear. Agora que achamos o rastro, temos que aumentar a velocidade. 

- Está certo, mas terei que enviá-los com alguns homens até alguma casa. Cinco deles são cães de caça do rei e não posso abandoná-los aqui. 

Draszen encolheu os ombros, sinalizando que pouco se importava com aquele detalhe. Procurou não pensar nos problemas que enfrentariam sem cães e com homens a menos. Estava convicto que encontraria seu filho e sozinho iria, se necessário fosse. Perdido em seus pensamentos, nem se deu conta de que Tcherno enviou com os cães os únicos quatro soldados que faziam parte da unidade original de Wikki.

Os batedores seguiram na frente para tentar achar mais rastros, mas até mesmo Draszen, que não era treinado, poderia seguir aquelas pegadas do pesado corcel da raça maldita. Estranhamente, se perto do reino era difícil encontrar vestígios, daquele ponto em diante qualquer inepto estava apto a identificar e seguir o caminho.

Ao que tudo indicava, o rastro levava às terras de Driet, governada por Oleg, o cunhado do rei que o presenteara com a águia dourada.

- Devemos enviar uma mensagem ao Lorde Oleg para que dobre a vigilância em Driet – falou Draszen, puxando as rédeas de sua égua.

Tcherno concordou e então, para surpresa dos soldados, o falcoeiro retirou cuidadosamente de uma de suas bolsas um pequeno pombo de penas brancas. Pediu ao líder para que ordenasse a algum dos soldados que escrevesse o bilhete, mas Tcherno gargalhou descontroladamente.

- Acha que eu comando escribas ou sacerdotes, falcoeiro? Estes são soldados que apenas lêem e escrevem a língua do sangue e do aço.

Draszen fez um sinal negativo com a cabeça e passou o pombo ao soldado mais próximo, pedindo que o segurasse enquanto ele mesmo escrevia o bilhete.

“Lorde Oleg, perigo iminente. Cavaleiros da Escuridão em suas terras. Redobre a vigilância.”
E assim o pombo voou para seu lar ao sul com um bilhete preso em sua garra. Draszen rezou para que o pombo não acabasse no bico de um falcão, mas sabia que aquele era o único jeito de tentar deter o avanço do cavaleiro nas terras do sul.

– Como sabia que precisaríamos nos comunicar com Driet, falcoeiro? – perguntou um dos soldados que acompanhavam a comitiva.

Draszen o fuzilou com seus olhos azuis brilhando abaixo da sobrancelha cerrada e respondeu:

- Os cavaleiros sempre vem de algum lugar ao sul. Se precisássemos de reforços, Driet seria o auxílio mais rápido Mas agora, não temos mais como pedir ajuda. O pombo se foi e estamos por nós mesmos.

- E quem lhe disse que os cavaleiros vem do sul? – questionou o sujeito, sem no entanto receber uma resposta.

Ao cair da noite, os cavalos estavam exaustos e, mesmo contrariado, Draszen concordou em fazer uma pausa. O local escolhido foi à margem do rio Turkista. O falcoeiro atravessou as águas geladas montado em sua égua e certificou-se de que o rastro prosseguia após o rio, pois não queria descansar e só depois perceber que havia perdido a trilha.

A pausa não foi confortável. Draszen deitou-se e tentou abstrair os pensamentos, mas tão logo fechava os olhos, a lembrança do cavaleiro capturando seu filho vinha à tona.

Além dos devaneios, ele ouvia os murmúrios dos soldados, que ingenuamente pensavam que ele estaria em sono profundo.

- Duvido que encontremos algo a não ser o cadáver sem olhos do garoto – disse um dos batedores, quando arguido por um soldado.

- É uma grande perda de tempo – cochichou outro soldado.

Depois de dois ou três comentários infelizes, Draszen não se conteve. Levantou-se, disse que montaria guarda durante toda a noite e assim o fez. Ficou encostado numa pedra saliente na beira do rio e colocou a ponta de sua espada sob o queixo, para garantir que não pregaria os olhos.

Mal o dia havia raiado, Draszen tratou de acordar a todos com gritos de ordem. Esperou impaciente a lentidão e a má vontade dos soldados, mas em alguns minutos, o grupo já estava novamente seguindo viagem.

Percorreram quilômetros pela estepe, pisando a vegetação que ainda sustentava uma fina camada de gelo.
O rastro ainda seguia para o sul quando um dos batedores retornou com o pombo correio morto com uma flecha atravessada no peito.


- Ao menos estamos na pista certa – disse o soldado – o pássaro foi abatido pelo cavaleiro – completou.

- Então vamos aumentar a velocidade – ordenou Draszen, aflito.

- Os cavalos não vão aguentar, falcoeiro. Estamos em um ritmo muito acelerado – retrucou Tcherno.

- Antes os cavalos do que Deyan. Vamos, cavalgarei o mais rápido que essa égua agüentar. Com ou sem a companhia de vocês.

- Pois bem, falcoeiro. A trilha do cavaleiro está indo para leste. Ele desviou e tomou a direção da taiga. Os cavalos não conseguirão galopar tão rápido entre os pinheiros, mas podemos encurtar a distância se diminuirmos o tempo de acampamento.

Draszen fez que sim com a cabeça e pôs-se a cavalgar novamente em um ritmo ameno. Os soldados foram atrás dele e continuaram até tarde da noite, já dentro da floresta.

Quando já passava do meio da noite e as estrelas mal iluminavam o caminho, Tcherno fez sinal para que parassem e acampassem.

O crepitar da fogueira e o assobio agudo do vento eram os únicos sons ouvidos no acampamento da tropa. Parecia que todos os animais daquela floresta conspiravam em um silêncio soturno, enquanto Draszen montava guarda com mais dois soldados. Seu turno terminaria antes do raiar do dia, mas ele não dormia e nem mesmo cochilara durante toda a viagem.

O falcoeiro mais uma vez não se sentia bem ao lado daqueles soldados e, mesmo quando o sono deixava pesadas suas pestanas, arranjava um jeito de não sucumbir. Cada vez mais sentia a maldade transpirar naqueles companheiros de viagem e precisava estar atento.

Quando o sol nasceu, como de hábito, Draszen acordou a todos para que nem um minuto fosse perdido. Muitos demoraram a se levantar e com esses o falcoeiro foi duro, chegando a dar pontapés nos mais preguiçosos.

- Deixe que eu mesmo discipline meus homens, falcoeiro – disse o líder da unidade, contendo Draszen.

- Está bem, mas faça com que esses indolentes estejam de pé na hora combinada. A cada bocejo desses vermes, meu filho tem menos chances de ser salvo.

A irritação de Draszen era natural, mas tão grande quanto seu desespero, era o descontentamento dos soldados com suas atitudes. Ele sabia disso, mas já não queria mais ponderar sobre. Queria apenas agilidade e àquela altura, estava completamente tomado pelo temor e desequilíbrio.

A comitiva partiu mais uma vez, agora em meio a abetos e pinheiros bem altos e de tronco robusto. Quanto mais os soldados penetravam na floresta, mais sinistra ela se mostrava. A névoa, comum no inverno, começou a ficar mais espessa e a neve, que cobria o solo por todo o caminho desde Anikka, estava bem mais volumosa, indicando que aquela região já havia passado por uma nevasca mais forte.

Perto do meio-dia, o grupo chegou a um lago coberto por uma fina camada de gelo. Tcherno ordenou que parassem para descansar os cavalos. O líder apeou, pegou um machado que trazia preso em sua sela e abriu um grande buraco no lago, para que os homens pudessem reabastecer os cantis.

- Vamos parar apenas por alguns minutos, Draszen. Encha seu cantil e continuaremos a busca. Sinto que não estamos longe dos miseráveis – disse ele.

Draszen saltou de sua égua e foi direto para o lago, com o cantil em mãos. Olhou para alguns soldados e percebeu que eles se entreolhavam de forma diferente. Provavelmente estava ficando paranóico, contudo, resolveu ficar ainda mais atento a qualquer movimento.

Ajoelhou-se à beira do lago, bem em frente ao lugar onde Tcherno abrira o buraco. Soltou a tampa do cantil de couro de Iaque e submergiu-o, deixando que o ar saísse pelo gargalo e produzisse pequenas bolhas na superfície da água.

Estava claro. O sol brilhava duplamente, iluminando o céu e dando luz em seu reflexo no lago congelado. O falcoeiro retirou o cantil de dentro do lago ainda sem estar repleto e jogou a água na terra para tirar o resto de cerveja que carregava nele. Molhou as mãos e levou-as aos olhos para espantar o sono e o cansaço. Depois, enfiou-as novamente no lago.

O cantil estava quase cheio quando ele notou a aproximação de alguém pela sua retaguarda. Imaginou que fosse mais um soldado se abaixando para fazer o mesmo, mas logo ouviu o som de um lento deslizar de lâmina, sendo sacada cuidadosamente de uma bainha de madeira. Aquele som era inconfundível para um soldado e, mesmo com todo o cuidado de seu dono, a espada fez questão de assobiar baixinho para Draszen, alertando-o do perigo iminente. Olhou para o lago e viu no pequeno reflexo um soldado se aproximando, não com um cantil em mãos, mas com uma arma levantada.

- Por Nrude – gritou, se virando e atirando o cantil contra o traiçoeiro soldado.

Draszen rolou por cima de seu corpo, escapando por pouco do golpe da espada. Quando conseguiu olhar a sua volta, percebeu que todos os companheiros estavam com suas armas em punho. E fez o mesmo, sacando sua lâmina de uma só vez.

- Não resista, falcoeiro. Estamos longe de casa e aqui não há ninguém que se importe com você ou com seu filho. Largue a arma e lhe daremos uma morte rápida - disse Tcherno.

- Não, eu faço o que vocês quiserem. Meu filho corre perigo, precisamos resgatá-lo. Por Nrud, não façam isso – implorou Draszen, com os olhos cheios de ódio, mas uma voz repleta de esperança.

- Ataquem – disse o líder, embainhando sua espada e dando de ombros para a teimosia da vítima que relutava em aceitar a realidade.

Os soldados cumpriram aquela ordem com sorrisos maliciosos e olhares de escárnio. Eram soldados escolhidos a dedo por Goran e a maldade corria em suas veias. Draszen, então, resolveu morrer lutando e levando o máximo de soldados consigo.

Atacou o soldado mais próximo com um golpe certeiro de sua espada e fez o inimigo urrar de dor. A lâmina atingira a perna desprotegida de seu antagonista, fazendo um jorro potente e quente manchar de escarlate seu uniforme.

Draszen parecia um lobo acuado por caçadores, mas não estava disposto a se render. Seu semblante estava transtornado. Tinha o cenho franzido e os dentes cerrados. Enquanto respirava ofegante, a visão começou a ficar embaçada.

Golpeou mais um soldado que se aproximara e se afastou dois passos para trás. Estava encurralado entre os inimigos e o lago congelado, quando notou um vulto enorme passar rapidamente por detrás das árvores. A sombra era disforme e a névoa não ajudava no reconhecimento, mas mesmo assim, o guerreiro reconheceu um cavaleiro.

Seu coração disparou com a possibilidade de estar próximo ao filho, mas a cabeça precisava raciocinar. Eram inimigos demais para enfrentar.

- Cavaleiros da Escuridão – berrou um dos soldados, um instante antes de ser atravessado por uma espada de lâmina larga e pesada, empunhada por um cavaleiro montado em um corcel branco.

Os soldados se viraram quase que simultaneamente ao ouvir o alerta do companheiro e mal tiveram chance de se defender. Cinco cavaleiros montados em corcéis fortes e robustos atravessaram o pequeno campo de batalha, obliterando aquele pelotão de Anikka.

Enquanto as narinas dos imensos cavalos abriam-se exalando vapor gelado, seus senhores golpeavam sem parar a todos que portassem uma arma na mão. Cabeças foram ceifadas de seus corpos por um machado de lâmina longa e afiada. Membros foram amputados por espadas rápidas e certeiras. Crânios foram esmagados por uma maça que parecia vinda direto do inferno gelado.


Draszen se posicionou com as pernas ligeiramente flexionadas e com a espada protegendo o corpo na posição vertical, mas antes que pudesse perceber, um cavaleiro de cabelo ruivo e olhos negros o desarmou e acertou sua cabeça com a empunhadura da espada, fazendo-o ajoelhar-se zonzo.

Logo atrás do cavaleiro ruivo, outro inimigo chegou a galope e terminou o serviço. Virando sua espada, golpeou Draszen com a superfície sem fio da lâmina, fazendo o falcoeiro desmaiar à beira do lago congelado.

_____________________________________________________________
História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N

Fonte: Jovem Nerd

Nenhum comentário:

Postar um comentário