DE VOLTA À LABUTA
Sentado em uma banqueta de madeira, forrada com couro de boi, Draszen refletia em sua casa. Tinha uma nova missão e, para cumpri-la, era preciso arquitetar um plano meticuloso, que não colocasse tudo a perder.
A contragosto, porém, sua concentração foi subitamente interrompida. O barulho, ainda ao longe, era familiar para seus ouvidos acurados. Cavalos se aproximavam. O falcoeiro, então, inclinou as costas para trás e aproximou-se da janela, com uma das mãos apoiada na parede. Por uma fresta desvendada na cortina, passou a acompanhar o movimento do lado de fora.
Seus olhos azuis se arregalaram quando notou a presença do rei Andras em meio a uma grande comitiva de cavaleiros. Apesar de toda amizade cultivada durante anos, o monarca nunca havia lhe visitado. O que testemunhava era algo, até então, inconcebível.
Levantou-se apressadamente. Puxou a blusa de lã grosseira, tentando ajeitá-la ao corpo. Deixou a espada embainhada em cima da mesa, mas cobriu-a com o manto vermelho dado por Izbaza, antes de sua partida.
Tão logo a trombeta tocou anunciando a presença do soberano, a porta da casa foi aberta por Draszen. O rei estava montado em um corcel branco. Seu semblante era austero. Seus olhos estavam semi cerrados, com o olhar frio como o inverno.
- Draszen, meu bom amigo. Me permita adentrar em seu lar para lhe fazer um pedido desesperado – disse o rei, finalmente demonstrando alguma emoção.
Refeito do susto de ver o monarca, o falcoeiro analisou o cenário e notou a presença de Goran e de mais quinze soldados acompanhando o nobre. Sentiu vontade de se lançar num ataque contra o traidor, mas preferiu a cautela. Já havia se convencido, após muito relutar, que a punição ao chefe da guarda aconteceria no tempo certo.
Goran tinha um sorriso cínico. Não escondia a satisfação em ver o rival em estado lastimável. Fitou o falcoeiro dos pés à cabeça, seus trajes e sua aparência miserável. Virou-se para seus companheiros e num sinal de reprovação, soprou pelas narinas.
- Por favor, meu senhor. Minha casa é apenas uma extensão de seus domínios – respondeu Draszen, com um largo sorriso, mas que não refletia seus sentimentos.
Andras apeou de sua montaria e caminhou na direção de seu antigo falcoeiro. Draszen esperou por segundos, mas depois se aproximou, curvando-se em respeito à autoridade do nobre.
- Meu senhor – disse ele em voz baixa.
O rei desdenhou daquela reverência formal. Fez Draszen levantar e deu-lhe um abraço, deixando o com a face corada. Apesar de toda sua história no palácio, o falcoeiro não esperava uma demonstração de carinho como aquela.
- Entre por favor, senhor – repetiu Draszen, ainda com a cabeça baixa.
Os dois entraram na casa de madeira e o anfitrião se apressou em servir uma caneca de vinho ao soberano. Ainda que sem muito jeito, Andras se sentou na banqueta de couro de boi.
- Desculpe-me se não tenho um vinho melhor, meu senhor. Este foi uma cortesia de Nastia – justificou-se.
- Não se incomode, meu amigo. Já degustei vinhos que nem mesmo Nastia aceitaria em sua taberna – retrucou o nobre, prontamente.
Draszen sorriu sem jeito e sentou-se em outra banqueta, deixando o jarro de vinho em cima da mesa, junto ao manto vermelho.
Finalmente, o rei seria mais claro sobre suas intenções.
- Meu caro, Draszen. Serei breve e direto em minhas palavras, pois preciso de uma resposta ainda mais imediata. Entendo sua angústia e compartilho a dor por tudo que estás passando. Tanto que aceitei de bom grado suas atitudes intempestivas: o rompimento com a aia da rainha, sua baixa do exército e essa sua repugnante opção por andar por aí como se fosse um mendigo…
Cada palavra proferida pelo rei passou a encher seu coração de ódio. Como poderia aquele homem compreender a perda de um filho? O que ele sabia sobre a dor e a impotência diante daquelas circunstâncias?
Mas Andras continuou.
- Acredite que não viria aqui se não estivesse desesperado, meu amigo. Meus pássaros são como filhos para mim. Você sabe muito bem que, depois de minha amada rainha, eles são as coisas que mais tenho afeto.
Draszen precisou se controlar para não mandar o monarca às favas. Enojado, sua vontade era expulsar o monarca dali. Comparar pássaros a entes queridos? Um absurdo.
- Eles estão morrendo, Draszen. Meus queridos pássaros estão doentes. Ninguém cuida deles como você. Além disso, algum maldito da raça da escuridão roubou meu açor de olhos escarlates. Vim aqui para lhe propor uma oferta: dobro seu soldo e dou-lhe dois dias de folga a cada semana.
O silêncio tomou conta da sala por instantes.
E eis que Draszen, mesmo ainda sem conseguir dar um norte definitivo aos seus pensamentos, vislumbrou ali uma oportunidade para levar a frente seu plano. Pois dentro do castelo novamente e com a ajuda de Izbaza, sua demanda poderia ser completada.
Assim, quando o rei já ameaçava dar sinais de impaciência, o falcoeiro resolveu arriscar:
- Meu senhor, não precisa mais argumentar. Aceito sua oferta com o coração aliviado. Estava cansado de não fazer nada e com saudades dos pássaros. Talvez o trabalho me faça bem. A labuta pode me fazer esquecer o sofrimento. Ou ao menos amenizá-lo.
- Alviceras, meu caro amigo! Mal posso esperar para contar a Smiliana sobre sua decisão. Você não pode imaginar o quanto fez seu rei feliz. E digo mais, meu bom homem: em breve irei lhe revelar um segredo que o deixará esfuziante.
Sorriso desajeitado no rosto, Draszen abaixou a cabeça para o rei, que o abraçou novamente, como um pai que faz as pazes com o filho depois de um longo inverno de intempéries.
- Ah, sim. Só mais uma coisa. Já ia me esquecendo, aliás. A rainha me pediu para convencê-lo também a dar uma nova chance à Izbaza.
Draszen franziu o cenho, deu um sorriso acanhado, mas respondeu amigavelmente:
- Precisamos de tempo para pensar, mas é uma situação que pode ser revista, meu Rei – disse Draszen, querendo protelar aquele tema.
O rei saiu da casa acompanhado do falcoeiro e, satisfeito, subiu em seu cavalo branco. Agradeceu mais uma vez e ordenou que todos partissem.
Goran, percebendo a mudança de humor de seu senhor, adivinhou o desenrolar daquele colóquio. Já não carregava mais em sua face aquele sorriso desafiador, mas voltou a fitar o falcoeiro de maneira fulminante. E quando os dois olhares se cruzaram novamente, açoitou seu cavalo com raiva.
Pôs-se a cavalgar com seus companheiros, então.
História: Fernando Russell @cancerjack
Ilustrações: Victor Negreiro @estivador
Revisão: Lucio Nunes @Lucio_N
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