Sitala é um conto seriado apocalíptico de Fernando “Tucano” Russell, com ilustrações de Brunner Franklin.
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Eu nunca mais atirei com uma calibre 12. No meu primeiro encontro com os Dragões, me senti um zero à esquerda. Sempre achei a escopeta uma arma pesada, mas enquanto atirava nas Akira Bikes, me lembrei de quando ainda era criança, dos tempos em que meu pai me levava para passear em um parque de diversões decadente em Coney Island. Eu sempre acertava os patinhos com a espingarda de rolha, mas eles nunca caiam.
Javier me deu uma FN MAG. Uma metralhadora belga de respeito que cuspia mais de 800 balas por minuto. Era uma verdadeira máquina de fazer defuntos. Depois desse dia, já nem me lembrava mais da minha Bettinsole e logo comecei a ter dores nas costas de carregar a FN comigo para todo lado, mas a sensação de poder era incrível.
Bem, eu estava em guerra. Uma guerra que nem era minha e era tudo o que eu não queria para a minha vida. O problema é que quando dei por mim, estava envolvido até o pescoço. E o pior de tudo, gostando.
A noite em que mataram Will e o dia seguinte foram bem longos. Ficamos esperando um contra-ataque, mas isso demorou um pouco para acontecer. Aquela foi a noite em que conheci a maioria dos caras que moravam em Youghal. Foi também nessa noite que Sean e Kegan selaram a paz na cidade.
Kegan era o dono da metade norte da cidade. Ele não chegava a ser um inimigo de Sean, mas era um rival. Eles se enfrentavam constantemente para ver quem tinha maior influência na cidade. Outro conflito entre ambos era no rugby, mas este foi mais difícil de acabar.
Nós éramos uns duzentos caras bem armados e dispostos a tudo para defender a cidade. Alguns dos “ caras” eram mulheres, mas a maioria delas você só poderia perceber isso se estivessem tomando banho. Mesmo assim, uma noite com uma delas era um prêmio, já que o gênero feminino era bastante escasso na região.
A mulher que eu tive maior contato foi Sinead. Ela tinha recebido esse nome em homenagem a uma cantora do século XX. O pai dela se amarrava nas músicas dela e, quando a filha nasceu, batizou-a com o mesmo nome.
O mais bizarro é que Sinead adotava o visual de sua xará – com o cabelo raspado – mas só conhecia uma música dela, que, diga-se de passagem, era muito chata. Ela ficava cantando repetidamente o refrão e para estar perto dela eu tinha que ficar ouvindo aquilo:
Cause nothing compares,
Nothing compares to youuuuuu!
Nothing compares to youuuuuu!
Sinead foi a minha primeira vez. Eu estava precisando mesmo. Estava tendo sonhos esquisitos e o pior deles foi um com a deusa Sitala nua, me seduzindo.
Eu não tive muita paciência com Sinead e ela, por sua vez, só queria experimentar a novidade da cidade. Javier a achava horrível. Dizia que ela tinha pústulas na bunda – e quem não tinha? O espanhol vivia dizendo que eu devia procurar uma prostituta dinamarquesa em Cork.
Para mim ela não era tão feia, mas o que me irritou foi a musiquinha em loop na minha orelha. Era um pé no saco.
Nós ficamos na expectativa de um ataque durante mais de uma semana, mas os Dragões não apareceram. Eu ficava imaginando o que faria um bando de orientais atravessar meio mundo para tentar invadir uma cidadezinha da Irlanda. As coisas na Ásia deviam estar uma verdadeira m#%&a!
Na segunda semana nós relaxamos. O time de Sean desafiou o de Kegan para uma partida de rugby. Naquele dia, achei insensato largar nossas defesas para ir jogar, mas vendo a alegria daqueles homens durante e depois do jogo, entendi que o que eles estavam defendendo ali era justamente o estilo de vida que eles levavam. Não faria sentido abrir mão das coisas que mais gostavam. O rugby e a cerveja eram a expressão do jeito irlandês de ser.
Joguei alguns minutos no time de Sean. Eu tinha uma noção do jogo porque conhecia o football americano. Mas tive que dar o braço a torcer: não tinha comparação! O football parava a toda hora. Não tinha uma continuidade. Acho que o football parava tanto porque nós americanos não conseguimos assistir a nada sem comer um cachorro quente ou um pretzel. Os irlandeses só bebiam. Bebiam a cerveja boa antes e, depois que já estavam embriagados, as que já tinham estragado.
Javier jogava bem, mas o forte dele era o soccer. Ele era de uma cidadezinha da Galícia chamada Cangas, que era bem próxima a Vigo. Então, cresceu torcendo para o time de Vigo, que por coincidência chamava-se Celta.
Quando foi para Cork pela primeira vez e descobriu que a torcida do Cork City era chamada de Celtics, Javier se ofereceu para jogar no time. Os caras não deram muita atenção na hora, mas quando o viram jogando, ficaram malucos. Começaram a chamá-lo de Toro, por causa de uma imensa tatuagem que ele tinha nas costelas. Um touro da raça miura, daqueles usados nas tourada. Mas era só o touro, sem toureiro, pois ele fazia questão de dizer que torcia para o bicho chifrar os caras.
Javier era sempre contrário aos padrões da sociedade e um dos motivos que o levou a se juntar aos Celtics e não aos Catholics, foi ser ateu. O time, que originalmente era formado pela comunidade Católica da cidade, se transformou num grupo de bárbaros que fingiam idolatrar os deuses celtas e que no fundo não passavam de ateus.
- Pior do que um católico, só mesmo um inglês protestante! Gritava sempre um dos trogloditas ruivos.
Eu ficava quieto no meu canto e não abria a boca para falar de religião.
Foram quase trinta dias até o ataque dos orientais. Eles vieram pela estrada do norte. Nós tínhamos feito uma barricada com carros velhos e sem motor, além de sacos de areia e entulho.
Molly, a mais louca das mulheres, foi quem deu o aviso. Ela estava de moto fazendo a ronda na estrada quando os viu se aproximarem de Youghal. Ela acelerou sua Road King e soou o alarme.
Logo todos estavam entrincheirados na barricada com suas armas. Os invasores vinham em um comboio liderado por um caminhão negro enorme, que tinha um dragão pintado na carreta. Era para ser um massacre. Sorte terem charas no navio que eu vim.
Resumindo: eu vim para a Europa em um navio de indianos. Os marinheiros indianos trouxeram charas. Javier roubou as charas. As trocamos por C4 em Cork. Explodimos o caminhão dos Dragões e os outros carros tiveram que dar meia volta.
Foi um espetáculo. Voaram destroços de dragão para todos os lados. Foi uma matança de fazer inveja a São Jorge. Comecei a gritar feito um louco e a chamar aos Dragões de Charlie. Ninguém entendeu nada e eu expliquei que Charlie era como os americanos chamavam os Vietcongs em uma guerra, tempos e tempos atrás. Eu pensei que iria lançar moda, mas eles fizeram caretas e continuaram a chamar os orientais de Dragões.
O grande problema a partir daí era que nós não tínhamos mais explosivos. Se os malditos Charlies tivessem mais caminhões daqueles, passariam pela barricada dando risada. Precisávamos de uma outra estratégia.
Javier Saavedra. A cada dia que passava eu admirava mais aquele cara. A admiração era geral. Ele era louco e às vezes ninguém entendia o que ele fazia ou pensava. Mas, o foda é que, invariavelmente, o que ele planejava dava certo.
Por isso, foi ele o designado para pedir ajuda em Cork. Bem, por isso e porque também ele iria para lá de qualquer jeito, pois era o fim de semana do soccer, ou futebol, como eles diziam. Sean e Kegan depositavam toda a confiança e esperança nele. Eu fui junto.
Seguimos de carro para Cork. Apesar do pouco tempo de viagem, conversamos muito, sobre muitos assuntos. Eu falei da minha fé em Deus e da minha religião. Javier me contou que tinha sido educado no catolicismo, mas que era ateu. Não quis entrar em detalhes sobre esse assunto. Acho que fiquei com medo de que ele conseguisse enfraquecer minha fé através de seus argumentos.
Mas falamos principalmente sobre sonhos. Sonhos que tínhamos quando criança, sonhos que se realizaram, sonhos que ainda tínhamos. Eu só não falei do meu sonho com Sitala.
Eu e ele éramos completamente diferentes, mas em alguns pensamentos, compartilhávamos alguma afinidade. Os sonhos de sua infância eram materiais e, como eu já disse, agora ele sentia-se vazio, por já tê-los realizado. Enquanto conversávamos, eu observava a paisagem à beira da estrada. Vi algumas propriedades abandonadas que talvez fossem um lar melhor do que o da cidade.
- Se eu conhecesse uma mulher sem marcas de pústulas e que quisesse ser minha, eu viveria em algum lugar afastado. Mas viver por aqui, sozinho? Eu prefiro a morte – disse o espanhol.
Em parte ele tinha razão. Sozinho, a vida no campo devia ser uma m$%&a profunda. Um tédio sem igual. Eu só não achava que a mulher tivesse que ser tão bonita como ele descrevia. Acho que se ela gostasse de mim e não fosse fã da Sinead O’Connor, eu me mudaria para algum fim de mundo para criar cavalos.
- Esse lugar é bonito, o que estraga são as pessoas – disse o espanhol sem olhar para mim.
- Você não gosta dos irlandeses?
- Não estou falando dos irlandeses. Estou falando das pessoas em geral: chineses, ingleses, irlandeses, americanos, indianos. O mundo é muito bonito para o ser humano. A varíola não fez o serviço completo.
Achei muita amargura no tom de vós de Javier e preferi não tocar mais no assunto.
Nós fomos direto para o Druidas. Os Celtics estavam lá reunidos, o que não era nenhuma surpresa. Invariavelmente o bar estava cheio de hooligans bêbados.
- Salve o nosso craque – disse um irlandês ao ver Javier.
A festa foi a mesma de semanas atrás. A mesma música, a mesma euforia… Era tudo perfeitamente igual e eu comecei a me sentir deprimido.
Era a terceira vez que eu estava em Cork. E já não era mais engraçado vê-los embriagados.
A graça, aliás, já havia se perdido na ocasião anterior. Isso porque fomos lá para pegar os explosivos que Javier havia negociado, mas nos levaram para uma festa. Não que eu não gostasse de festas, mas é que quando chegamos o pessoal já estava mais alto do que os anjos de Deus. Eu mal me sentei para tomar uma cerveja e um cara que tinha os olhos mais vermelhos que eu já tinha visto na minha vida, me tirou para Cristo.
- Poooorrra, meu irmão. Você é a cara do McColish. Você só pode ser o McColish, ou irmão dele.
O cara me levou pelo braço por toda a festa, me mostrando para todos os convidados e especulando sobre minha semelhança com o tal McColish. – Ele parece com que? Perguntava. – Porra, ele é igualzinho ao McColish! Ele mesmo respondia.
Foi uma noite desagradável, mas eu não podia contrariar aqueles malucos e desde então, fiquei conhecido como McColish.
Bem, voltando à nossa missão em Cork. Javier e eu fomos lá aquele dia para conseguir ajuda. Ou arrumar mais explosivos, ou arrumar mais gente para resistir ao ataque dos Dragões. Mas não conseguimos nem uma coisa, nem outra. Apenas informações. Mas estas modificariam nossa realidade completamente.
- Esses orientais malditos – começou a resmungar um dos hooligans. - Se eu soubesse o que eles querem, eu daria a eles só para eles pararem de encher o meu saco. Mas eu ainda não descobri o que eles estão procurando – continuou, misturando palavras com soluços.
- Como assim? - Perguntei eu - Eles não querem dominar as cidades?
- Claro que não. Se quisessem, já o teriam feito. Eles têm armas melhores que as nossas. Têm mais gente e, dizem por aí, que eles ressuscitaram a rede e têm dois satélites funcionando. Eles estão é procurando alguma coisa, que está por aqui, nessa região – respondeu o irlandês. – Eles passaram por Macroon, mataram alguns, tentaram interrogar outros, vasculharam a cidade toda e depois partiram.
Eles querem alguma coisa que nós temos. Talvez sejam os Órgãos das Igrejas de Youghal!! – Completou ele, dando uma gargalhada.
Javier e eu nos entreolhamos e as minhas dúvidas cresceram. As dele não!
- Por falar em procurar algo – continuou o hooligan – tem uma garota te procurando, Toro.
- Procurando por mim? - Espantou-se Javier.
- Porra, tem algum outro espanhol maluco que vive por aqui? - Bradou o irlandês, indignado. - Ela é russa, se não me engano. Disse ter negócios a tratar com você.
Javier ficou ainda mais confuso e por um momento ele deixou de lado os problemas de Youghal e deixou que a curiosidade o dominasse.
- Onde ela está? – Perguntou afoito.
Os olhos de Javier brilharam e eu previ algo de muito errado acontecendo em nossas vidas. Eu não estava enganado. Mais uma vez, era o começo do fim.
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Cores: Felipe Prieto
Revisão: Lucio Nunes
Fonte: Jovem Nerd
Até onde li,muito boa a criação. =) Parabéns.
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