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Eu estava exausto. Mais do que o cansaço físico, o estresse daquela situação me deixou a ponto de cair de joelhos e pedir para Deus me levar – mais uma vez. Minhas têmporas estavam latejando e eu quase não conseguia raciocinar.
Já era tarde da noite e o espanhol não chegava. Ruslana estava próxima à janela, vigiando a rua. Eu, do outro lado da torre, brigava com meus olhos para que não se fechassem. Pálpebras pesadas. Maldita areia do João Pestana.
- Americano! Tem um carro se aproximando com os faróis apagados. Deve ser Javier – disse Ruslana, de súbito.
- Mais fácil que sejam os orientais – retruquei, me aproximando da janela. Saia daí antes que te vejam.
Cheguei bem perto de Ruslana e vi o movimento na rua. Não era um dos carros dos Dragões, com certeza. Mas poderia ser qualquer um, então, puxei a russa pelo braço e descemos as escadas.
Quando chegamos à nave principal da igreja, fui até o altar e me entrincheirei atrás dele. Estava tudo escuro e a única iluminação era a luz das estrelas atravessando os vitrais coloridos, que retratavam o calvário de Cristo.
A porta da Igreja se abriu lentamente e vi três vultos entrando. Não pude identificá-los, mas percebi que dois estavam mancando.
Quase disparei, porque meu dedo tremia ao encostar no gatilho da Kalashnikov.
- Javier! – disse Ruslana, em novo rompante.
Segurei forte o fuzil e mais uma vez, por pouco meu dedo não puxou o gatilho. Como aquela maluca podia saber que era Javier? E se fossem Dragões, ou Hooligans enlouquecidos?
- Ruslana! – respondeu o espanhol.
Merda. Para variar, ela estava certa. E eu? Droga, eu parecia uma criança ingênua. Todos sabiam mais do que eu, eram mais perspicazes e determinados do que eu. Eu era um coadjuvante quase sem importância.
Aquilo me deprimiu.
Javier e dois Hooligans se aproximaram. Um deles era Will, que me olhou e deu um largo sorriso, levantando uma metralhadora enorme com o braço direito. O outro eu não conhecia, mas tinha uma ferida horrível numa das pernas e o corpo repleto de sangue. Não consegui tirar o olho daquele ferimento e só voltei a mim com a voz do espanhol:
- Isso é o que acontece quando se toma um tiro com balas explosivas, garoto.
Olhei para Javier e me lembrei de tudo que tinha ouvido da boca de Ruslana.
- Espere Javier – ordenei – Não se aproxime. Você tem muito o que me explicar.
Javier ignorou minhas ordens e continuou vindo em direção do altar.
- Agora não, americano. Os orientais vão chegar aqui em alguns minutos. Me ajude com isso – disse ele, empurrando o altar.
Automaticamente larguei minha arma e o auxiliei. Percebi que sua perna também estava machucada. Não como a do irlandês, mas igualmente coberta de sangue.
Com a ajuda de Ruslana e Will, tombamos o altar que escondia um alçapão de madeira. Na hora, lembro-me de que achei que fosse um depósito, mas não. Aquele alçapão era entrada para uma rede de túneis que atravessava toda Cork.
- Saída para Londres, hermanos – disse o espanhol.
Ruslana deu um sorriso, mas não teve tempo de expressar sua alegria com palavras.
Um tiro no escuro atravessou seu peito, espalhando seu sangue no meu rosto.
- Puta madre!!!! – gritou Javier,abrindo fogo contra o vitral da igreja.
Eu e Will ficamos novamente atrás do altar, mas o hooligan que tinha a perna ferida não teve a agilidade para se juntar a nós. Teve a cabeça arrancada por um tiro certeiro.
Javier saltou para dentro do alçapão e puxou o corpo de Ruslana. Will me mandou entrar no buraco também, mas ao invés de me seguir, fechou o alçapão.
Foi a última vez que o vi.
O que ele fez em seguida, eu apenas imagino. Afinal, ouvi barulho de tiros durante mais de um minuto, tempo suficiente para que conseguíssemos nos afastar.
O espanhol arrastou o cadáver da russa por mais alguns metros e depois parou para se despedir dela. Eu estava assustado, mas tive a decência de me virar de costas para deixá-lo à vontade. Segundos depois, senti a mão do espanhol no meu ombro.
- Vamos embora – disse ele. – A morte de Ruslana não foi em vão, Ezekiel.
Corremos o mais rápido que o túnel – e a perna de Javier – permitiam. Era uma construção rudimentar, como uma mina de carvão iluminada por parcas lâmpadas incandescentes. Claro, eu nunca tinha entrado em uma mina de carvão, mas assisti a alguns filmes em que eles sempre andavam com um canário na gaiola. Senti falta de um canário!
Depois de correr por pelo menos uns trezentos metros, Javier parou,virou-se e abaixou um interruptor. Antes que eu perguntasse o que era aquilo, ele me puxou pelo braço e me disse para correr mais rápido ainda.
A explosão foi brutal. Senti pedras me atingindo nas costas, nas pernas e na cabeça, mas não parei de correr e nem olhei para trás, até ouvir novo comando de Javier.
- Isso vai nos dar tempo, hermano.
Caminhamos por horas em túneis que cada vez ficavam mais estreitos. A luz era escassa, mas o espanhol sabia onde ia. Eu o segui com uma mão em seu ombro e a outra segurando o fuzil.
Apesar do péssimo momento, ele ainda teve ânimo para uma piada, que demorei a entender. Mas, depois, lembrou-me dos filmes antigos que vimos juntos em sua casa, em Youghal:
- Cuidado, daqui a pouco chegaremos ao covil de David Lopan.
Paramos para descansar duas vezes antes de chegarmos ao final do túnel. Na parte final do caminho, minha cabeça já raspava no teto e tínhamos que andar encurvados. Javier começou a imitar o Quasimodo.
Bem, talvez você que está lendo esse meu diário não tenha tido o prazer de ler Victor Hugo, mas o desgraçado conseguiu me fazer esquecer a tensão por alguns segundos interpretando o corcunda.
Naquele momento eu tive certeza de que Ruslana estava equivocada. Aquele cara não podia estar tramando o fim do mundo. Não só pela sua personalidade, mas pelas ações e pela sua conduta de vida, que eu admirava todos os dias.
- Espera um poco, um poquito mas, para elevar te mi felicidad - cantarolou ele ao se deparar com o final do túnel. Estávamos diante de uma escada de ferro cravada na parede, que levava à superfície.
Ri da música que ele cantou, mas ele me olhou sério e continuou:
- Espera un poco, un poquito más. Me moriría si te vas – cantou ele com uma lágrima escorrendo em um dos olhos.
Entendi que aquele lamurio piegas o fazia lembrar de Ruslana, não sei bem porque, então me calei e o segui escada acima.
A escada levava a um galpão quase vazio. Quase, porque era enorme e a única coisa que estava guardada naquele lugar era um humvee preto equipado com uma metralhadoras .50 no teto.
- Nossa passagem para Londres – disse o espanhol.
Javier foi até a entrada do galpão e abriu uma fresta de um portão de correr. Botou a cabeça para fora e depois abriu o portão completamente.
Era dia e, graças a Deus, não havia nem sinal dos orientais por ali. O plano de fuga parecia perfeito. E pela primeira vez desde a confusão no estádio, eu tive certeza que conseguiríamos escapar.
- Para o carro. Você é o artilheiro, eu o piloto.
Partimos pela pista de pouso de um pequeno aeroporto. As aeronaves pareciam novas e estavam intocadas, como se alguém cuidasse delas como peças de arte. Eu observava a tudo com a cabeça para fora, pelo teto solar.
- Uma pena que não tenhamos combustível para essas máquinas. A viagem seria muito mais rápida - gritou ele para que eu ouvisse.
- Você sabe pilotar aviões, Javier?
- Ora, e quem não sabe?
Seguimos uma estrada para o norte. Era uma estrada alternativa que nos levaria a Wexford. Dizia Javier que lá encontraríamos uma balsa para atravessar para Gales sem chamar atenção.
- Não se preocupe, hermano. Vamos completar nossa missão – disse ele no banco da frente, exibindo o frasco que Ruslana carregava consigo.
- Javier, precisamos conversar sobre essa missão. Do que se trata? – insisti, me acomodando no banco do carona.
- Vamos livrar o mundo, Ezekiel. Livrá-lo do que há de mais tóxico e letal: o ser humano. O planeta não merece tudo o que fazemos. E se isso não for feito agora, não teremos outra chance. Se falharmos, o planeta vai se tornar o inferno.
- Ruslana já me falou isso, mas eu duvidei que você fosse a favor. Imaginei que você estaria ajudando sem saber o que ela tinha em mente.
- A idéia é minha, Ezekiel. Eu a convenci.
- Mas, e aquela história de morar no campo e ter uma família? Você me disse que se arrumasse uma mulher sem pústulas viveria num lugar afastado. Você poderia ir com Ruslana para uma casa no campo.
- Daí viriam os Dragões e destruiriam minha casa, matariam Ruslana e nossos filhos e acabariam com a minha vida. E se não fossem os Dragões, seria a torcida adversária, ou um vizinho filho da puta.
- Eu não acredito! Você teve nas mãos a mulher mais linda que eu já vi na vida e uma chance de recomeçar a vida e não quis nem tentar?
– Garoto, Ruslana está enterrada em escombros debaixo de uma igreja em Cork. Você acha que se não tivéssemos nosso plano, alguma coisa seria diferente?
Minha voz quase nem saiu, mas eu ainda retruquei:
- Mas, você nem tentou…
Javier estava com a cara fechada. Dava para ver que aquele assunto tinha se esgotado para ele. Mas eu não podia deixar aquele plano insano ser levado à diante. Comecei a me desesperar. Pensei em me jogar do carro em movimento, mas aquilo não ia adiantar nada. Javier estava obstinado a cumprir sua missão.
- Eu não devia ter saído da América - murmurei, baixando a cabeça por entre os joelhos.
- Por que? Acaso achas que na América as coisas são melhores? Você estudou história quando era criança, Ezekiel? Ou só lhe ensinaram religião?
Tentei responder, mas o espanhol estava cada vez mais enfurecido e não parava de falar:
- Os yankes são os Dragões do passado. O que eles fizeram antes da pandemia nem se compara aos grandes destruidores. Bilhões de litros de agentes poluentes jogados na atmosfera por chaminés de industrias que fabricavam armas. Armas com munições revestidas com urânio que fizeram os índices de câncer em crianças aumentar em 400%. Embargos econômicos que fizeram nações perecerem de fome. Intervenções em culturas dos quatro cantos do mundo. Se meu plano existe, é porque eu vi o que seus pais e avós fizeram ao mundo.
Ele falou durante muito tempo, mas eu já nem ouvia mais. Fui para o banco de trás do veículo. Aquilo tudo era muita coisa para eu digerir. Eu estava zonzo e perturbado com aquela situação, mas ainda pude ver que uma pistola repousava presa ao assoalho do humvee.
Javier continuou a gritar, misturando castelhano com inglês e sabe-se lá qual língua mais. Para mim era tudo um zunido infernal.
Desprendi a pistola e a segurei com minha mão trêmula.
Como tudo na minha vida, até aquele momento, eu só fui perceber o que estava fazendo muito tempo depois.
Posso dizer que puxei o gatilho pensando em fazer aquela loucura parar. Na hora, não passou pela minha cabeça que eu estava selando o destino da humanidade.
Bola de neve.
Os miolos de Javier se espatifaram contra o parabrisas do carro e eu vomitei mais de uma vez. Soltei a pistola e chorei como criança. Eu admirava aquele cara e quase entendia o que ele pretendia, mas meu coração me mandou fazer o que achava certo naquele momento.
O carro saiu da estrada e foi parando aos poucos. Desci do carro, respirei fundo, vomitei de novo e caí de joelhos.
Apesar de tudo, achei que Javier merecia um funeral, então rapidamente comecei a cavar uma cova. Pensei em fazer uma cruz, mas achei que um ateu não ia querer nenhum símbolo religioso em seu túmulo. Então improvisei com a camisa dos Celtics.
Enterrei com ele o frasco de Ruslana. Todo o mal que aquilo causaria, deveria ficar ali, enterrado com seu mentor. O mundo nunca conheceria o fim da humanidade. Pelo menos, não por causa daquele frasco.
Limpei o vidro do humvee e guiei até Wexford. Lá, encotrei a balsa que me levou ao país de Gales. O condutor da balsa me desejou sorte na minha missão. Ele nem imaginava o que eu havia feito.
Segui até Londres, mas não fiquei por lá. Fui até o continente, conheci a Cidade Luz, troquei de carro umas três ou quatro vezes. Matei várias pessoas que tentaram me roubar ou me matar. Desci para a Itália e passei dois meses em Roma, até decidir que iria para Israel.
Hoje é meu último dia em Jerusalém. Minhas tropas partem nessa madrugada e eu vou tentar desfazer um erro que cometi há quase trinta anos.
Para quem acessar esse diário, que fique claro que meu desejo nunca foi o mal, mas eu não entendi as palavras de Javier. Azrael disse um dia: Prefiro a destruição total e a inexistência do que voltar para o inferno.
E foi justamente no que se transformou o mundo: um inferno. Os Dragões invadiram toda a Europa, parte da América e tornaram a existência uma tortura insuportável para todos sob seu domínio.
Mas nós vamos lutar e, embora meus soldados não saibam das minhas reais intenções, nós vamos livrar o mundo de nossa existência.
FIM
Texto: Fernando “Tucano” Russell
Ilustrações: Brunner Franklin
Revisão: Lucio Nunes
Cores: Rodrigo Valente
Fonte: Jovem Nerd
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