Escrito por Gustavo Aquino dos Santos
As intermináveis horas se arrastavam lentamente. Cambaleante, Rídur seguia, trazendo em seu íntimo o ardente desejo de vislumbrar, mesmo que uma última vez, as paragens de sua terra natal. Com a alma transtornada, alquebrada pelas aterradoras visões que a guerra lhe proporcionara, ele cruzou as extensas planícies de Tuanar, deixando as agruras da batalha para trás; e antes que pudesse ter percebido, ele já havia se perdido. Lentamente, seus passos vagarosos o conduziram a uma terra estranha e deserta: uma região além das distantes colinas assombradas de Kithäe-Ür, cujas quais, aparentemente, não haviam sido desenhadas em nenhum mapa. E sombras sinistras se adensaram em volta do guerreiro errante.
Os olhos cansados de Rídur olharam ao redor. Ele pôde perceber, na medida em que sua visão contemplava o estranho cenário no qual ele estava, que tudo naquela terra, odiosamente estranha, era louco como um sonho de um deus. Rídur já não mais podia distinguir o sol, ou a lua; já não sabia por quanto tempo seus pés haviam palmilhado àquele caminho, ou, se já haviam se passado horas ou dias. Seus sentidos, sua sensibilidade, seu senso de direção estavam abalados, norteados de puro estupor.
As longas pradarias áridas, descortinadas por seus olhos esgazeados, ondulavam de maneira peculiar, como se toda a terra fosse feita de um grande oceano insalubre de areia e sal. Tudo o que Rídur ouvia era distorcido por sua mente abalada. As estrelas giravam na abóbada do firmamento. Seus passos cambaleantes já não eram mais controlados por sua vontade e, não obstante, eles seguiam sempre em frente. O terreno árido e desértico, cujo qual ele se encontrava, foi se distanciando pouco a pouco no horizonte turvado; e então os galhos ávidos e retorcidos de uma floresta escura saudaram-lhe o caminho à frente. Por longas horas, e infindáveis dias, Rídur seguiu sem em nenhum momento esmorecer, pois durante sua interminável andança, ele não sentira fome, sono ou cansaço.
Rios e riachos, ele cruzou. Pântanos estagnados e colinas escarpadas, ele atravessou. E, cada vez mais, seus pés se aproximavam das plagas misteriosas do leste, onde nenhum homem deveria ir. Em seus ouvidos um chamado fraco ecoava: uma voz distante, porém clara e límpida o comandava; doce, suave como as harpas douradas das fadas e mais profunda e melodiosa do que os clarins dos elfos.
Lentamente, o céu sob sua cabeça encheu-se de nuvens negras e frias. De repente, gotas gélidas caíram da abóbada acinzentada. Cruzando uma pequena orla de troncos enegrecidos, Rídur parou. Ao olhar para cima, uma exclamação de súbita e inesperada surpresa escapou de seus lábios ressequidos: à sua frente, a alguns metros da orla de troncos, uma grande torre, com seu topo branco e imponente tocando os céus, podia ser divisada. A prodigiosa construção de basalto branco, que emergia diante dos olhos assombrados do fascinado guerreiro, contrastava com céu nublado. As gotas cristalinas da chuva fina banhavam as milhares de madrepérolas e gemas que se destacavam em sua superfície reluzente. Instintivamente, no momento em que os olhos negros de Rídur pousaram sob àquela misteriosa torre, ele soube, em seu mais profundo íntimo, que tanto a torre, como os desenhos rúnicos e arcaicos entalhados nela, não haviam sido feitos por mãos humanas.
Com a vista ofuscada, devido ao estonteante brilho do basalto, Rídur, espantado, esfregou os olhos e, por alguns instantes, duvidou do estado de sua sanidade mental. Então, inesperadamente, um som vigoroso envolveu o ar, tão sutil como uma brisa ligeira, que traz em seu perfume imagens de praias brancas e gramados sempre-verdes, um canto harmonioso chegou aos seus ouvidos. E Rídur, em meio ao universo mágico daquela melodia, pôde reconhecer uma pujante voz feminina. A voz, solene e delicada, sacudiu o âmago de sua alma e lhe despertou um desejo avassalador de entrar na misteriosa torre e tomar em seus braços ávidos, e sedentos, a detentora daquele cantar miraculoso. O desejo de contemplar àquela que cantava passou a atormentá-lo como a dor de uma agonia física e, valendo-se de resoluta vontade, Rídur seguiu em seu objetivo: decidido, ele iria adentrar na torre dos prodígios.
A determinação dinâmica do guerreiro fez com que ele galgasse os primeiros degraus externos da construção. De pés firmes, Rídur tocou os degraus cristalinos da torre. No exato momento em que suas botas de couro tocaram o chão crestado da entrada, as imensas portas de jade-esverdeado se abriram. Desconfiado, resguardado em relação aquele ambiente estranho, ele adentrou na torre fantástica e, subitamente, todos os seus sentidos despertaram; Rídur, agora, estava mais vivo – de certa forma, atento novamente. O antigo estado de torpor e inércia, que o haviam trazido até aquele lugar, desapareceram. Entretanto, era ainda evidente que um estranho poder operava sobre o guerreiro: uma estranha e sobrenatural força ainda o enfeitiçava. Mas, agora, de espada na mão, ele estava pronto: perigoso, desperto, arisco como um lobo cinzento que se depara com um ambiente que lhe é hostil; pronto para matar ou morrer.
Com o caminhar furtivo, Rídur adentrou pelo grande salão dourado cujos inúmeros corredores lustrados abriam-se à sua frente como um magnífico labirinto; ele observou as grandes e maciças colunas, grossas, nodosas como troncos jovens de árvores, que sustentavam o peso descomunal da imensa torre. Valendo-se de movimentos silenciosos, Rídur dirigiu-se cautelosamente até uma enorme sala, de onde ele pôde captar, de relance, um estranho brilho dourado bruxulear entre a entreaberta porta, de entalhes de bronze, que conduzia a uma grande câmara hexagonal. Curioso, ele forçou a pesada porta, e, de repente, seus olhos escuros encheram-se de luz devido ao fulgor resplandecente dos milhares de tesouros que jaziam esparramados pela extensa câmara. Aturdido pelo estonteante brilho das pedras reluzentes, Rídur pôde ver as miríades de gemas preciosas que jaziam aos seus pés trêmulos. Ele vislumbrou o mundo de jóias e riquezas incomensuráveis que se apresentava à sua frente: um mundo onde os mais variados tesouros resplandeciam em baús ornados de prata.
Aparvalhado, zonzo, confuso, acreditando piamente que sua mente delirava, Rídur se agachou em direção à pilha de gemas na esperança de tocar alguma daquelas maravilhas, apenas para ter a derradeira confirmação de que tudo aquilo que seus olhos descortinavam era real. Seus dedos trêmulos rapidamente apanharam um grande rubi, e seus olhos se puseram a contemplar o belicoso brilho carmesim que emanava da perfeita pedra avermelhada. Ouro e prata, isso nunca havia passado em seus pensamentos: Rídur nunca havia cobiçado tais coisas. Tudo o que seu coração tempestuoso ansiara era a força para empunhar uma arma, e uma linha reta em direção aos seus inimigos. Ele ignorava as futilidades, as ambições vazias de reis e homens. No entanto, ali, naquela silenciosa e brilhante câmara, diante daquele extenso mar de riquezas e sonhos, uma estranha cobiça havia despertado em seu coração; Rídur se preparou para saciá-la. A pequena bolsa de couro amarrada firmemente em volta de sua cintura foi aberta. Suas mãos grossas e ávidas se prepararam para despojar os valiosos tesouros que estavam ao seu alcance.
Então, um frio repentino subiu sua espinha. Uma sensação incômoda, como se algo espreitasse a suas costas, assomou-se em sua intuição selvagem de guerreiro. Rídur, por alguma razão inexplicável, sabia que corria perigo. Suas mãos deixaram de lado a pilhagem dos tesouros para apertarem firmemente o cabo da espada; e ele, em um átimo de segundo, girou seu tronco em forma ofensiva. O som cortante do aço, assobiando no ar, ecoou pela grande câmara; um guincho inumano reverberou, o jato escarlate jorrou no ar, e Rídur, perplexo, viu a grande cabeça amorfa de um ser escuro e peludo cair entre as jóias e os baús prateados.
Com os olhos assombrados, Rídur viu o grotesco corpo sem vida agonizar à sua frente, porém, sua mente acelerada não teve tempo para formular conjecturas, pois outra criatura sombria saltou em sua direção. Entretanto, com um rápido lance de olho, ele antecipou a investida das garras sinistras da coisa e, com estonteante destreza, desceu velozmente a lâmina opaca de sua espada; um lampejo prateado faiscou. A lâmina afiada decepou o braço peludo da fera na altura de seu hediondo ombro. A besta, moribunda, cambaleou e caiu. Uma enorme poça de sangue e visco se formou no local de sua queda.
Em total estado de selvageria, o guerreiro aguardava mais um ataque repentino. Com o peito arfando, de pernas arqueadas e com a espada suja de sangue em riste, Rídur era como uma estátua bárbara dos Reis do Passado; sua alma selvagem era como uma força primordial inconquistável, e desejava infligir o máximo de dano possível em seus adversários. Então, inesperadamente, seus olhos rubros de combatividade foram gradativamente sendo envolvidos pela luz tênue que emanava de uma forma feminina que entoava cânticos de outrora: a figura de uma deusa, em carne e osso, apareceu à sua frente.
Os pequeninos pés da singela e delicada figura desceram calmamente as escadas de cristal do andar superior da torre. Nua, como a Aurora correndo sobre os prados floridos, a deusa se aproximou de Rídur; Seus olhos imortais, perfeitos, impassíveis, encontraram-se com os dele. Os lábios da mulher-deusa sorriram uma malícia atrevida para o guerreiro sujo de sangue. Rídur pôde sentir, como uma agonia que feria sua alma, que todos os contornos da deusa à sua frente eram exuberantes: a cabeleira escura, a epiderme pálida como a neve e o corpo voluptuoso emanavam uma combinação apaixonante de luxúria, loucura e prazer. Os seios desnudos, magníficos como os de uma ninfa, detinham colares de pedras preciosas que repousavam sobre seu alvo pescoço; Seu caminhar leve, calmo, inabalável como uma brisa outonal, inspiraram uma paixão doentia em Rídur: seu sangue desejava ferver.
— Bravo, meu guerreiro de ferro – soou a voz, clara e cristalina, da deusa. – Vencestes as sombras fatais. Pois bem, diga-me, ó homem das Terras do Sol, o que queres como recompensa? O que queres de mim, a Dama dos Desejos?
E então, quando aquela voz magnífica entrou pelos ouvidos de Rídur, sua pele se arrepiou em um êxtase alucinante. Por alguns instantes, ele ficou em silêncio: sorvendo, saboreando cada palavra expelida por aquela boca perfeita.
— Recompensa maior, ó Fada dos Sonhos, seria saber teu nome e de onde vens – respondeu Rídur, finalmente.
Um riso forçado explodiu dos lábios da deusa em forma humana; ela lhe respondeu com palavras austeras, que viam embaladas de desdém e pura zombaria: não obstante, seu hálito era mais fresco e límpido que um regato das montanhas.
— Meu nome, ó homem, é Yäira. E de onde eu vim tua mente frágil e enfermiça nunca poderia conceber. Meu espírito é antigo, remonta a Aurora da criação deste mundo infeliz; eu me recordo das noites desprovidas de lua, das manhãs desprovidas de sol; eu vi os pais dos elfos despertarem à beira das águas do despertar. Vi as flâmulas dos exércitos dos odiosos deuses serem desfraldadas frente às portas do Inferno. Por muitas vidas eu vaguei neste mundo. Meu desejo de ir e vir é guiado apenas por minha vontade. Entretanto, jovem criança, eu procuro um senhor; um homem cujo sangue quente fervilha e corre em um corpo de aço. Tu serias esse senhor? Tu serias capaz de ser o senhor daquela que clama por um? Ó, estúpido Rídur, tu serias capaz de domar a tormenta que é Yäira, aquela que nasceu do vazio primordial?
As palavras ousadas, vociferadas pela mulher-deusa, pouco importaram a Rídur; muito menos ele se atinou pelo fato de seu nome ser conhecido por Yäira. Pois, em seu cérebro frenético, enfeitiçado pela deusa, as únicas palavras assimiladas foram “Senhor” e toda a atenção do seu olhar era dedicado ao corpo nu que pairava à sua frente como um centelha branca, radiante e imperecível. Então, sem se dar conta, em um movimento automático, ele deixou sua espada cair. Seus dedos em forma de garra se espalharam pelos ombros delgados e perfumados da belicosa figura feminina.
Um profundo e enlouquecedor desatino se apoderou de Rídur. Ele a apertou com violência contra seu peito maciço: a deusa dobrou-se perante a força bruta do guerreiro. Rídur, enlouquecido, tentava atrair os lábios fogosos e provocantes de Yäira ao encontro dos seus, porém, ela era mais rápida e desviava seu rosto radiante abruptamente; um sorriso devasso silvava de seus dentes brancos como o marfim.
Instigando cada vez mais o homem, ela conseguiu se soltar dos poderosos braços de Rídur e, colocando-se em uma posição ousada, perguntou com um tom de voz inquiridor:
— Queres possuir meu corpo, bravo guerreiro?
— Desejo você mais do que o ouro de todas as nações do mundo - bradou Rídur, enlouquecido. - Aquecerei você com o calor de meu sangue.
A resposta imponente, vociferada pelo guerreiro, agradou Yäira, fazendo com que um sorriso macabro fosse desenhado em seu rosto perfeito; o olhar ousado da deusa se tornou sinistro, malicioso como os de uma víbora.
— Farias, então, um último sacrifício, ó Rídur? Serias capaz de dar-me um presente digno de uma Rainha? Afinal, quem é o guerreiro que jaz aos meus pés? – perguntou ela, com sua voz doce e harmoniosa.
— Sacrifício? Mulher, por você eu derrubaria as montanhas! – respondeu Rídur, apertando firmemente os alvos braços de Yäira. – Você pergunta quem é o guerreiro que jaz aos seus pés? Pois eu lhe direi. Sou Rídur, o Alto, o Leão de Irüme! Vamos, peça o que quiser! Pelo fogo e pela morte, eu juro que farei o que me mandar.
— Homem – respondeu Yäira -, tu não precisara derrubar as montanhas que o repugnante Mahal construiu; muito menos necessitará desafiar a horrenda e antiga morte em seus reinos gélidos e sombrios. Tudo o que eu quero, bravo Rídur, é um pouco da seiva que pulsa em suas veias. Quero aquilo que Ilúvatar concedera a ti, mas, entretanto, não o concedera a mim. Quero que seu sangue corra pelo meu corpo sedento; uma gota é tudo o que peço. Estaria disposto a conceder-me tal graça? Ou tu, Rídur, o Leão de Irüme, és um covarde? Diga-me afinal, quem é o guerreiro indomável que jaz aos meus pés? Quem é o mortal que jaz sob os pés de Yäira, aquela que nasceu do vazio antes da Grande Canção?
Como que vítima de um derradeiro e maléfico feitiço, Rídur nem ao menos respondeu às perguntas de Yäira; nem mesmo o estranho e insólito pedido feito por ela causou-lhe assombro. Hipnotizado pelo vislumbre daquela beleza pálida, sutil e aterradora, ele, sem titubear, retirou a pesada cota de anéis de malha. Com o torso nu, Rídur desembainhou uma pequena adaga de cobre. Cortou, de forma vertical, seu próprio peito. Gotas escarlates escorreram pelo corte superficial. Os olhos de Yäira faiscaram diante de tal visão. Jogando a pequena adaga no chão, Rídur desatou o nó que envolvia seu cinturão. Ao retirar as grevas que cingiam seus joelhos, ele ficou nu diante da deusa, tal como ela estava dele.
— Não era isso o que queria, ó Fada dos Sonhos? – bradou o guerreiro, contraindo os músculos de seu peito ensangüentado. – Venha, meu sangue é teu! Beba do sangue daquele que é seu Senhor! Beba daquilo que lhe foi privado!
Então, ao ouvir a imponente ordem de comando, a deusa perfeita se aproximou; seus lábios quentes, descarnados e belos como um figo recém-cortado, tocaram os de Rídur. Neste momento, no exato instante em que os lábios róseos de Yäira tocaram os dele, seu corpo estremeceu; um êxtase avassalador, inexplicável, inundou todos os seus sentidos, sua pele ferveu de paixão e desejo. Com um gesto brusco e selvagem, Rídur agarrou os cabelos escuros e sedosos da deusa, e atraiu seu corpo abrasador junto ao dela; como dois animais, sedentos de paixões animalescas, eles rolaram pelo chão dourado do grande salão. Yäira, embevecida de loucura e prazer, agarrou com força o pescoço taurino de Rídur e levemente direcionou seus lábios em direção ao peito largo do guerreiro, de onde escorriam as copiosas gotas rubras de sangue.
Ela beijou, mordeu e sugou as gotas de carmesim que desciam do corte. O ápice, o derradeiro gozo do prazer percorreu todo o corpo de Rídur naquele momento; sensações indescritíveis infestaram seu ser. Sua alma caminhava longe, palmilhando um extenso caminho de delícias. Yäira, tomada de furor, gemia de forma inumana – como que se estivesse saciando uma fome, que a muito lhe havia sido privada do alcance. Apertado sua robusta ilharga, ela envolveu seu corpo junto ao de seu amante: envolvendo-o à moda de uma víbora estranguladora. Então, pouco a pouco, o prazer que percorrera o corpo de Rídur foi desaparecendo, transformando-se, gradativamente, em uma dor excruciante e insuportável. Algo parecia perfurar seu corpo. Inesperadamente, ele sentiu os longos dentes caninos de Yäira rasgarem sua pele; ao mesmo tempo em que unhas pontiagudas foram cravadas com violência em seus ombros. Uma força monstruosa, descomunal, havia se apoderado dos membros belos, delgados e femininos, da deusa. Rídur não conseguiu se livrar daquele abraço terrível de paixão e morte.
Os sons dos corpos se digladiando aumentava e, de forma zombeteira, um riso profano sibilou dos lábios ensangüentados de Yäira. Rídur, tentando desesperadamente escapar das garras sinistras da deusa, segurou com violência os cabelos dela, no entanto, imediatamente, ele sentiu os tufos da sedosa cabeleira escorrerem em suas mãos trêmulas. Então, com os olhos arregalados de terror, ele viu o corpo da deusa, outrora formoso e deslumbrante, transformar-se em uma forma horrenda, escura e peluda, de um demônio além da racionalidade dos homens.
A forma profana e grotesca do monstro lembrava, em seus mais sórdidos contornos, a silhueta de um grande macaco encurvado. E Rídur, pasmo, envolvido em uma sensação de nojo e asco, sentiu o cheiro nauseabundo e fétido que emanava daquele ser tenebroso e maldito. A dança macabra pela sobrevivência se iniciou, e girando o corpo, numa vã esperança de escapar das mordidas venenosas e das garras dilaceradoras, Rídur empregava toda sua força leonina contra o demônio.
Os brados de fúria da besta ecoavam pelo grande salão, e o guerreiro, embaixo daquela grande massa escura e disforme, empenhava sua tenaz resistência contra a força titânica do bestial macaco encurvado; e a morte o errava por margens diminutas. Então, aliado a um inesperado golpe de sorte, Rídur conseguiu se desvencilhar do monstro e, com um movimento destro, agarrou a espada que jazia jogada no chão; e rapidamente, com uma esquiva ágil, ele aderiu uma postura ofensiva: a espada em riste, o torso projetado para frente e o olhar cinzento esgazeado; o guerreiro, com a espada entre as mãos, estava frente-a-frente com o horror infernal que habitava a torre. O demônio, por sua vez, vendo o brilho do aço relampejar e tendo os olhos desafiadores à sua frente, sorriu com terrível crueldade e sua voz gutural falou:
— Muitos caíram aqui, ó homem – disse a voz ululante do ser repulsivo. – Guerreiros poderosos, elfos, homens e anões. Todos foram enfeitiçados pelos meus encantos; e todos morreram perante o meu abraço. Tu, em breve, farás companhia a eles; tu, Rídur, serás uma sombra, um escravo, um espectro de minha vontade. Me entregue tua alma e prepare-se, ó homem.
Com a velocidade de um raio ofuscante, a besta medonha investiu. Rídur, no mesmo instante, tomado de puro terror, recuou seus pés e, com os músculos tesos, lançou sua espada com toda a força que seu corpo pôde exprimir: a lâmina opaca zuniu ao atravessar a extensa sala e um baque seco indicou que o trajeto da arma havia encontrado seu fim. O odioso e nojento sangue escuro lavrou o chão: a espada, lançada como um projétil pelas mãos pesadas de Rídur, fora cravada no pescoço nodoso do demônio.
O monstro sacudiu seu corpo repulsivo, e, com a espada profundamente enterrada, agonizou por alguns instantes. Então, após o último gorgolejar agonizante, a vida se esvaiu daquele ser que fora conhecido como Yäira. Porém, inesperadamente, a torre de basalto sacudiu em seus alicerces profundos; e imediatamente, ao reconhecer o derradeiro sinal da derrocada daquele lugar nefasto, Rídur concluiu que o que sustentava a torre era a mágica do ser amaldiçoado que jazia morto aos seus pés.
Ruindo, rápido como a confirmação de seus pensamentos, as grandes colunas fenderam-se. Desenfreado, Rídur correu em direção à saída. Nu, ofegante e suado, ele seguiu com estonteante velocidade pelos tortuosos e estreitos corredores e, ao cruzar as esverdeadas portas de jade, a imensa torre envergou e, dobrando-se como papel ao vento, desmoronou em milhares de pedras brilhantes.
No exato momento em que se jogou porta afora, Rídur, ao cair sob a turfa macia, levou as mãos à cabeça; na tênue esperança de evitar os milhões de fragmentos rochosos que iriam voar devido à fenomenal queda da construção imponente. Entretanto, para o seu derradeiro espanto, nenhum pedaço de detrito fustigou seu corpo; de fato, nem mesmo o estrondoso som, que racionalmente deveria ter ressoado com a derrocada da torre, havia chegado aos seus ouvidos. Intrigado, Rídur se levantou da turfa úmida. Ao olhar para trás, seus olhos contemplaram, para a sua mais insana loucura, que não havia nada! Nenhuma torre ou construção, apenas uma clareira lúgubre e vazia iluminada pelo feixe de luz de um luar abjeto, agourento.
Diante do medonho fato enlouquecedor, que agora seus olhos arregalados descortinavam, Rídur sentiu uma sensação sinistra pairar à sua volta. “Bruxaria” foi a palavra que, involuntariamente, escapou de seus lábios balbuciantes. Sua pele formigou de pavor, porém, desta vez, ele não ousou duvidar de sua sanidade; Rídur sabia, perfeitamente, que uma vontade maléfica o havia trazido até aquele lugar e que as sombras sinistras ainda o espreitavam com suas garras pontiagudas e fatais. Então, perante a esse pensamento tenebroso, ele disparou. Abraçado pela escuridão noturna, com passos céleres ele seguiu; como um louco ele continuou em frente, correndo, perseguido por um inimigo intangível e inabalável: o medo.
O guerreiro assombrado seguiu em sua corrida cega; por dias Rídur correu, sem cessar. E seus pés vacilantes e extenuados só pararam quando ele alcançou as fronteiras das terras ocidentais, pois lá, diziam os mais sábios, os fenômenos eram, ainda, racionais e o dedo gelado do Antigo Inimigo do Mundo ainda não havia alcançado os sonhos das mentes sãs dos homens. Um Inimigo incompreensível, cujo qual o demônio que habitara a torre fora apenas um servo; um escravo, atraído pela sua majestade e poder de outrora.
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