01 julho, 2013

O Acidente - Wesley Alencar

Três garrafas tilintavam sem parar debaixo do banco do motorista, e depois uma quarta garrafa foi arremessada junto às outras, chegando a derramar um pouco de cerveja. Quando Beto percebeu que tinha sujado o carpete novo do carro do irmão xingou muito, e logo tateou o porta-luvas em busca de qualquer pedaço de tecido que pudesse usar pra limpar a sujeira, dividindo a atenção entre a procura e o tráfego relativamente tranquilo à sua frente. Não tranquilo o bastante para que ele desviasse da garota que atravessava a rua de cabeça baixa.
Não o bastante para evitar um desastre.

Por um instante o efeito do álcool passou completamente. Lúcido, Beto percebeu que não tinha nenhuma das mãos no volante, que o carro mudou de faixa bruscamente, que um garotinho brincava com seu cão na calçada, e que a moça de cabelos cor de ferrugem parecia muito apressada e perdida em pensamentos, e que ela não percebeu o veículo se aproximando. Foi quando ele pisou fortemente no freio, e então o mundo virou de ponta cabeça, voltou ao normal e inverteu-se novamente, para manter-se assim.

Beto não sentia nada além de dormência por todo o seu corpo. A visão meio turva ainda lhe permitiu distinguir algumas silhuetas cruzando de um lado para outro diante de si. Ele chegou a ouvir algumas vozes indistintas, porém alarmadas, que se intensificavam na medida em que as silhuetas se aglomeravam ao que ele achava serem alguns metros adiante, até que uma das vozes lhe soou distinguível.

- ...Eu perguntei se você tá bem! Não se mexe, tá? Já chamamos o socorro.

Beto não conseguia exprimir uma palavra que fosse, sequer sentia seus lábios. Foi acometido por uma leve tontura, que aos poucos se intensificou até que sua cabeça latejasse de dor. As silhuetas ainda não lhe eram completamente nítidas, mas ele pôde perceber que eram pessoas socorrendo a garota que ele vira antes do acidente. Ele notou que ela ainda estava deitada e parecia imóvel, cercada do que ele julgava serem transeuntes ocasionais que presenciaram o acontecido. Por um instante Beto viu parte do rosto da moça e notou que muito sangue lhe escorria, vindo de vários lugares.
Apesar de não sentir nada além da dor de cabeça, seu coração ficou apertado.

Quase desfaleceu algumas vezes, mas sempre que sentia a escuridão cobrir-lhe, respirava bem fundo e tentava falar alguma coisa, ou pensava em seus pais que faleceram em um acidente muito similar. Chegou a imaginar se esse não seria seu destino, morrer como seus pais morreram. Como se estivesse predestinado por uma maldição de abandonar os que dependiam dele, assim como aconteceu com seus pais. Mas não podia de maneira alguma abandonar suas meninas.

Beto tinha duas filhas gêmeas de cinco anos. A mãe era uma antiga namorada que abandonou as crianças em sua porta sem justificativa alguma, e desde então manteve-se fora de contato. Beto acreditava que ela teria se mudado para o exterior, mas era melhor assim, afinal sabia que ela seria uma péssima mãe. As crianças estava na casa da avó, onde passariam o fim de semana, para fazer companhia à senhora viúva que tinha como amigos apenas os conhecidos da igrejinha que frequentava.

Depois de algum tempo o socorro chegou. Os paramédicos agiram em conjunto com os bombeiros para retirá-lo em segurança do carro apenas com algumas escoriações e cortes superficiais causados por fragmentos soltos do para-brisa. Beto recebeu tratamento emergencial e um colar ortopédico, mas rejeitou ser carregado de maca até a ambulância. Levantou-se e caminhou apoiando-se a um dos socorristas, e no meio do caminho viu a garota que antes estava caída no chão ser levada até outra ambulância próxima, mas dessa vez pôde enxergar seu rosto perfeitamente. Era uma mulher jovem, muito bem vestida, tinha um semblante doce, porém forte, exatamente como Melissa, uma de suas filhas. Alguém que ele poderia amar pro resto da vida, se não a tivesse tentado matar.

Ah meu Deus! E se tivesse sido Melissa, o que eu faria? Preciso reparar isso, pelas minhas pequenas... e por ela.

Então Beto, contrariando o socorrista que o conduzia, desistiu de subir naquela ambulância e apressou o passo para alcançar a outra. Disse ao paramédico que conhecia a moça e sentou-se ao seu lado.
As sirenes cortaram a noite carregando uma dúvida de sobrevivência e uma certeza de mudança plena.

Você vai sair dessa, nem que eu precise dar a minha vida pra isso”.

E ele deu.

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